Ex-missionário nomeado para Funai é acusado de manipular indígenas e dividir aldeias

Organização em que Lopes Dias trabalhou por 10 anos foi acusada de levar doenças fatais a isolados e teve pastor norte-americano condenado por pedofilia e abuso sexual de menores indígenas no Acre

Por Diego Toledo, da Repórter Brasil

“Não queremos novos abusos”. É com esta frase que os matsés, etnia que vive no Vale do Javari, no Amazonas, encerram uma carta de repúdio à nomeação de um ex-missionário evangélico para cuidar de uma das áreas mais sensíveis da Funai (Fundação Nacional do Índio). Lideranças indígenas da região ficaram espantadas ao saber que o novo responsável pela proteção de povos isolados, Ricardo Lopes Dias, é o pastor que viveu e trabalhou no Javari por uma década, convertendo comunidades e dividindo aldeias – enquanto chamava de “pecado” alguns dos seus costumes ancestrais.

Paulo Marubo, líder de outra etnia do Vale do Javari, região com a maior concentração de povos isolados do Brasil, também não esconde sua insatisfação: “Quem já foi pastor nunca deixa de ser”. Seu sobressalto e o de outras lideranças indígenas locais deve-se não somente ao trabalho evangelizador de Lopes Dias nas aldeias, mas também ao fato de a organização para o qual ele trabalhou durante uma década – a Missão Novas Tribos do Brasil – ser acusada de genocídio. Soma-se a isso o caso de um ex-missionário de seus quadros ter sido condenado por pedofilia.

Política da Funai há mais de 30 anos defende que indígenas isolados permaneçam nessa condição, já que contatos anteriores resultaram em mortes e perda de cultura ancestral (Foto: Gleilson Miranda/CGIIRC/Funai)

Há ainda o receio de que o novo coordenador mude a política da Funai, consolidada desde 1987, de que os povos isolados devem continuar sem serem contactados. Isso porque contatos anteriores resultaram em violência e em epidemias que levaram à morte de dezenas de indígenas, como aconteceu com os zo’é após serem convencidos por missionários da Novas Tribos a deixar a condição de isolados.

Os indígenas de Atalaia do Norte, no Vale do Javari, conviveram com Lopes Dias entre 1997 e 2007, quando ele atuou como pastor da Novas Tribos na região. Ao tentar estabelecer uma nova igreja na aldeia Lobo, nos anos 2000, Dias enfrentou a resistência de lideranças da etnia matsé (também conhecida como mayuruna) e acabou construindo a igreja em uma nova aldeia, a Cruzeirinho. A manobra dividiu a população matsé, com parte deles se convertendo à nova religião.

“O senhor Ricardo nunca teve autorização para entrar em nossa aldeia. Ele manipulou parte da população matsé para que fosse fundada uma nova aldeia. As lideranças tentaram ir até essa nova aldeia, em busca de um diálogo, mas foram expulsas com violência. O senhor Ricardo tirou proveito dos matsés, se apropriou de nossa cultura e vendeu sua casa na aldeia para a igreja”, diz uma carta assinada por lideranças matsés, divulgada na terça-feira (4), quatro dias após o anúncio da nomeação de Dias.

“O projeto dele é facilitar o ingresso de missionários na Terra Indígena do Vale do Javari”, afirmou Marubo, que é coordenador da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) , destacando que na região a presença dos missionários é muito forte. “Eles abordam os jovens para atrai-los para igreja e manipulá-los contra o movimento indígena.” Essa abordagem, acrescenta, inclui a entrega de presentes, como roupas, e a promessa de mais oportunidades de acesso a serviços de saúde e educação. Nos cultos, os pastores criticam lideranças indígenas e condenam rituais tradicionais. “Eles dizem para esses jovens que o movimento indígena só atrapalha, que nem toda cultura é cultura, é coisa de demônio”, completa Marubo em entrevista à Repórter Brasil.

Novas Tribos: conversão, pedofilia e genocídio
A organização onde Lopes Dias trabalhou até 2010 é o braço brasileiro do movimento missionário norte-americano New Tribes Mission, que promove a evangelização de povos nativos desde os anos 1950 em países da América Latina, Ásia e África. Recentemente, mudou seu nome para Ethnos360, mas continua com a mesma missão, alertada em seu site: “chegar à última tribo, independentemente de onde ela possa estar” e “criar igrejas entre os grupos inalcançáveis ao redor do mundo”.

No Brasil, nos Estados Unidos ou em outros países, a organização está envolta em acusações, processos judiciais e condenações. Em um dos casos mais graves, um missionário norte-americano da Novas Tribos, Warren Scott Kennell, foi condenado a 58 anos de prisão por pedofilia e abuso sexual de meninas indígenas no Acre, onde ele havia trabalhado entre 1995 e 2001. Foi preso em 2013, quando voltou aos Estados Unidos, em um episódio que ganhou repercussão na imprensa estrangeira. Dentro de sua bagagem de mão, foram encontradas 940 imagens pornográficas de meninas indígenas de cerca de 9 anos.

No Brasil, a Novas Tribos também está mergulhada em escândalos: foi acusada de trabalho escravo, exploração sexual, tráfico de crianças indígenas e de levar doenças a aldeias. No final da década de 1980, missionários da organização chegaram ao povo zo’é no Pará. O contato foi tão catastrófico que eles foram expulsos pela Funai do território. Uma equipe do órgão enviada à região constatou que ao menos 37 indígenas (um quarto da população) foram mortos por doenças respiratórias após contato com os evangélicos. Segundo os missionários, no entanto, os zo’é teriam sofrido 15 mortes, todas anteriores ao contato com a missão e nenhuma delas decorrente de doenças respiratórias.

“Eles dizem para esses jovens que o movimento indígena só atrapalha, que nem toda cultura é cultura, que é coisa de demônio”, diz Paulo Marubo, líder indígena do Vale do Javari

A Ethnos360 não respondeu às perguntas da Repórter Brasil até o fechamento desta reportagem. Na época da prisão, eles disseram à Amazônia Real que “estavam chocados pelo caso Warren Scott Kennell e pelas vítimas que sofrem tanto” e reafirmaram “o compromisso com a prevenção e proteção das crianças e adolescentes”.

Fora do Brasil, a Novas Tribos atuou na conversão do povo Ayoreo, no Paraguai, com relatos de confrontos violentos, destruição do modo de vida nômade e mortes. A Ethnos360 também não comentou sobre o caso.

Conflito de interesses
A nomeação de Ricardo Lopes Dias para coordenar a área de indígenas isolados gerou reações entre povos, associações indigenistas como o Cimi (Conselho Indigenista Missionário) e a INA (Indigenistas Associados) e até do Ministério Público Federal (MPF), que entrou com uma ação civil na última terça-feira (11) para tentar impedir que ele assuma o cargo.

O MPF argumenta que a ocupação da função pelo ex-missionário representa “evidente conflito de interesses, incompatibilidade técnica e risco de retrocesso na política de não contato adotada pelo Brasil desde a década de 1980, apontando ameaça de genocídio e etnocídio contra os povos indígenas”. Além de pedir a suspensão da nomeação, a ação pede o cancelamento da portaria que alterou o regimento da Funai e que permitiu que um não servidor do órgão assumisse a coordenação de povos isolados.

“O histórico dele como missionário representa um conflito de interesses bastante grave, porque, como coordenador de indígenas isolados, ele terá informações privilegiadas sobre a localização desses grupos”, reforça à Repórter Brasil o antropólogo Tiago Moreira, pesquisador do Instituto Socioambiental (ISA).

Ex-presidentes da Funai ouvidos pela Repórter Brasilafirmam tratar-se de um retrocesso ao Brasil Colônia, quando jesuítas catequizavam indígenas para conquistar as suas terras. “Voltamos a um remoto período anterior ao Marquês de Pombal”, lamenta Márcio Santilli, que presidiu o órgão sob o governo de Fernando Henrique Cardoso, ressaltando que a política de não contato está estabelecida há cerca de três décadas como forma de garantir a proteção dos isolados.

“Os contatos feitos [com povos isolados] foram muito traumáticos e acarretaram em genocídio e etnocídio de povos indígenas”, afirmou à Repórter Brasil a procuradora da República Marcia Zollinger, uma das co-autoras da ação. “Há um entendimento de que o adequado é o não contato.”

‘Perseguição religiosa’
Em sua defesa, Ricardo Lopes Dias afirmou à Repórter Brasil que se desligou da Novas Tribos em 2010 e não realiza mais atividades pastorais. Confrontado sobre as reações negativas à sua nomeação, Dias diz ter sido alvo de exageros, especulações e ataques que “beiram a perseguição religiosa”.

A respeito das acusações das lideranças matsés, ele afirma que é um direito deles se expressar. “Entendo a crítica deles como um exercício da liberdade deles de se manifestar, como também outros têm se manifestado positivamente. Nunca impedi ninguém de se pintar, de tomar rapé. Respeito a opinião deles e espero ter a oportunidade de conversar com eles, para esclarecer melhor, e tirar a ideia de que eventualmente eu me envolveria com a evangelização, o que não é o projeto.” Sobre a ação do MPF, ele afirmou que não iria comentar porque não havia lido o documento.

“O histórico dele como missionário representa um conflito de interesses bastante grave, porque ele terá informações privilegiadas sobre a localização desses grupos”, afirma o antropólogo Tiago Moreira, do ISA

“Minha indicação foi em razão da minha qualificação acadêmica. O meu objetivo é me manter nessa condição, e não como um pastor. É preciso me ver como um antropólogo, com capacidade de desenvolver um bom trabalho”, afirmou. O ex-missionário é formado em antropologia pela Universidade Federal do Amazonas, com mestrado em ciências sociais na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e doutorado em ciências humanas e sociais na Universidade Federal do ABC (UFABC).

Apesar de ressaltar sua especialização como antropólogo, sua produção acadêmica tem como foco o seu trabalho como missionário no Vale do Javari e, em sua tese de mestrado, ele agradece à Missão Novas Tribos do Brasil “por ter sido tão importante na minha formação e por ter viabilizado o meu tempo no campo”. A tese foi defendida cinco anos após a data que Lopes Dias diz ter se desligado da Novas Tribos. Nela, ele menciona como os matsé, após contatos com evangelizadores, recitavam “trechos do Novo Testamento em Matses” (…) e “que corrigiam a conduta dos ouvintes, especialmente quanto à necessidade imperativa de leitura diária da Bíblia e ao abandono do consumo de bebidas alcoólicas, festas e danças (em cidades próximas), práticas sexuais extraconjugais, entre outros ‘pecados que se cometem’”.

Também na sua tese, Dias tenta justificar os conflitos com algumas lideranças indígenas: “não procede a menção do jovem líder Matses conhecido como Gaúcho a mim como um dos causadores da permanência dos Matses no Cruzeirinho e de sua recusa de retornarem à área demarcada. A comunidade começou a se formar antes da minha chegada lá em 1997, e se mantém em crescimento mesmo após a minha saída em 2007”, escreve.

Edward Luz e outros apoiadores por trás do ex-missionário
Além de relatar as acusações contra a ação de Lopes Dias e da Novas Tribos, a ação movida pelo MPF dá detalhes dos grupos que apoiaram a nomeação do ex-missionário. A ação cita afirmações feitas na sede da Funai em Altamira (PA), no último dia 31, pelo antropólogo Edward Luz, ligado à bancada ruralista no Congresso Nacional e filho do pastor Edward Gomes da Luz – que é presidente da Novas Tribos há mais de 20 anos.

Na ocasião, o antropólogo questionou a ideia de “isolamento voluntário” dos povos indígenas e não apenas defendeu a nomeação de Dias, como indicou que havia trabalhado para isso. “Acabamos de indicar uma nova pessoa para a CGIIRC (Coordenação Geral de Índios Isolados e Recém Contatados), e nós vamos formalmente mudar essa política”, afirmou o antropólogo, revelando a intenção de colocar um fim à política de não contato com os isolados, da maneira que ocorre hoje. “A legislação que propunha o isolamento destes grupos é antiga, ultrapassada e inadequada para os tempos atuais.”

Em entrevista à Repórter Brasil, Edward Luz disse que não representa o governo Bolsonaro, mas é “ouvido com consideração” por ministros e setores importantes do governo. Luz, conhecido como o “antropólogo dos ruralistas” por suas contestações a territórios indígenas e de quilombolas, chegou a ser cotado pelo governo para assumir a vice-presidência da Funai.

O antropólogo disse que a ida de Dias para a Funai não foi uma indicação pessoal sua, mas, sim do grupo que ele representa, que inclui “setores das Forças Armadas, de cristãos (católicos e protestantes em igual peso) e produtores rurais afetados por demarcações de terras indígenas”.

Luz confirmou que esse grupo que ele representa tem defendido junto ao governo uma mudança na política de não contato da Funai. “Não há a menor evidência de que seja realmente voluntário o estado em que se encontram estes índios. Um fato inquestionável é que ninguém tem a menor ideia do que pensam, como vivem e em que condições de defesa imunológica encontram-se estes índios em situação de isolamento imposto por terceiros”, afirmou à Repórter Brasil. Luz foi detido na tarde deste domingo (16) na terra indígena Ituna-Itatá, no Pará – e em seguida liberado.

Em meio às influências evangélicas e do agronegócio no governo Bolsonaro, a nomeação de Lopes Dias surgiu como uma figura capaz de agradar apoiadores do presidente. Além da mudança na Funai, o presidente enviou ao Congresso, no último dia 5, um projeto de lei que autoriza atividades econômicas em terras indígenas, incluindo mineração e pecuária.

A confirmação de Lopes Dias e o envio do projeto de lei, ocorrido na mesma semana, refletem o que Eduardo Viveiros de Castro, antropólogo e professor do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), chamou de “uma ofensiva econômica e religiosa contra os povos indígenas”, em uma entrevista ao Globo.

“O grande capital quer as terras, e os evangélicos querem as almas. O projeto é abrir novas áreas para o extrativismo mineral e derrubar mais floresta para abrir pasto e plantar soja. O Brasil está retomando sua vocação de colônia de exportação de produtos primários. Tivemos o ciclo do açúcar, o ciclo do ouro, o ciclo do café e o ciclo da borracha. Agora temos o ciclo da soja e da carne.”

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