‘Extremamente discriminatório’: como era atendimento médico antes do SUS

Há quase 40 anos, o Brasil tirava do papel o que, hoje, é considerado um dos maiores sistemas de saúde público do mundo, o SUS. Para quem conheceu de perto a situação do país antes de sua criação, a mudança é drástica.

Há um divisor de águas: o Brasil antes e depois do SUS.

Médicos ouvidos por VivaBem lembram como eram os atendimentos antes de existir “um SUS”, cuja criação foi regulamentada em 1990. E destacam que, apesar dos desafios ainda presentes, a criação do sistema foi uma conquista.

Na época, quem não tinha condições de pagar uma consulta não tinha acesso aos serviços de saúde —não existia convênio médico, aliás. Atualmente, qualquer pessoa em solo brasileiro é (ou deveria ser) atendida no SUS —independentemente da classe social.

‘Hospital tinha ala para indigentes’

O médico Paulo Buss, ex-­presidente da Fiocruz, tem 58 anos de profissão. Na década de 1970, antes da criação do SUS e durante a ditadura, estudou e atuou em cidades do Rio Grande do Sul.

Ele viu de perto a desigualdade social nos atendimentos. Em um dos hospitais particulares filantrópicos —de caridade, como eram chamados na época—, existia uma ala especial para quem vivia em vulnerabilidade social.

Paulo Buss é ex-­presidente da FiocruzImagem: André Az/Agência Fiocruz

Os pacientes que não podiam pagar eram chamados de indigentes [termo pejorativo que não é mais utilizado]. Quando existia uma necessidade clínica ou cirúrgica, eles eram colocados nessas alas. Paulo Buss, médico

Buss lembra que a prática era comum no mundo todo. Aliás, quando ainda era estudante e voltava para a cidade natal, Jaguari (RS), só era chamado para cirurgias quando o paciente era um “indigente”.

“Estamos falando de um hospital filantrópico, não universitário. Só quando era indigente que poderíamos participar. Se fosse uma senhora que pagava pelo serviço privado, por exemplo, não éramos convidados”, lembra o sanitarista.

Uma das opções de quem não tinha condições financeiras era aguardar atendimento em uma Santa Casa –na foto, a do Rio de Janeiro (1890 a 1900)Imagem: Acervo do Instituto Moreira Salles/ Wikimedia Commons

“Esse é meu registro mais gritante desta época. Existia uma diferença de atendimento —até a comida, por exemplo, era diferente.”

O ex-presidente da Fiocruz conta que os médicos não passavam todos os dias para acompanhar os doentes.

Os exames eram restritos ao mínimo possível. Eram sinais tristes da desigualdade social no sistema de saúde. Isso acontecia porque não existia um conceito do direito à assistência à saúde estabelecido. Paulo Buss, médico

Foto de 1955 mostra a Maternidade de São Paulo, instituição beneficente, que foi desativada em 15 de setembro de 2003Imagem: Domicio Pinheiro/Estadão Conteúdo

“Antes, você não tinha um sistema, mas muitas iniciativas que pipocam de diversas naturezas”, explica Buss. “Quem tinha condições de um atendimento particular pagava direto ao hospital. Quem não tinha dependia do que chamamos hoje de ‘caridades’ ou associações que os municípios criavam.”

Inamps: ‘Só trabalhador com vínculo era atendido’

Em 1977, o governo militar da época criou o Inamps (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social), serviço focado nos trabalhadores de carteira assinada que, posteriormente, foi extinto e incorporado ao SUS.

Fila na porta de prédio do InampsImagem: Divulgação/ Acervo Xico Tebaldi

Quem tinha vínculo formal, ou seja, contribuía com a previdência social, tinha acesso à assistência médica. A infectologista Rosamelia Queiroz da Cunha trabalhou por 10 anos no Inamps, no Rio. Primeiro, atuou no Posto de Assistência Médica Bangu e, um ano depois, no Hospital Geral de Jacarepaguá.

Existia essa questão de só trabalhador com vínculo ser atendido ali, mas isso acabou com o SUS e sua proposta do atendimento universal. O paciente só era atendido se no sistema constassem todos os dados registrados ali.
Rosamelia Queiroz da Cunha, médica

Ambulância do extinto Inamps em atendimento na praia de Santa Catarina, na década de 1980Imagem: Divulgação/Governo de Santa Catarina

‘SUS não é dádiva do céu’

Formado em medicina nos anos 1970, Luiz Antonio Santini é outra pessoa que viu de perto a criação do SUS e, inclusive, participou ativamente da organização do que, futuramente, viria a ser o sistema de saúde.

Luiz Santini (centro) durante posse de novo diretor do Hospital de Cardiologia de Laranjeiras (RJ), do Inamps, em 1985Imagem: Acervo pessoal Luiz Santini

Professor da Universidade Federal Fluminense, ex-diretor do Inca (Instituto Nacional de Câncer) e autor do livro “SUS: uma biografia: lutas e conquistas da sociedade brasileira” (Record), ao lado de Clóvis Bulcão, trabalhou em hospitais e serviços de emergência no Rio de Janeiro.

“A emergência era a única opção para quem não tinha para onde ir”, lembra. “Chegava de tudo: desde problemas crônicos, verminoses e episódios agudos.” A fila, inclusive, era ainda mais comum, diz o médico.

“Quem não era assegurado pela previdência era indigente. Uma palavra forte para demarcar as pessoas fora do mercado de trabalho. Isso era extremamente discriminatório. Eram as pessoas que não tinham acesso a nenhum serviço.”

Paciente aguarda em corredor de pronto-socorro de hospital em São Paulo, em 1973Imagem: Estadão Conteúdo

Naquela época, quase 50% da população era rural, ou seja, sem carteira assinada. “As populações rural e urbana não empregada ou sem carteira assinada não tinham acesso a nada”, afirma.

O SUS foi uma criação a partir da identificação dessa realidade. Mas não é dádiva do céu. É resultado de uma luta política, de uma geração de pessoas formadas pelo movimento estudantil com consciência da responsabilidade social.Luiz Antonio Santini

Uma situação marcante para Santini, que mostra a desorganização constante antes do SUS, é a de um episódio que ocorreu com ele, no Hospital Universitário Antônio Pedro (RJ).

“Ligaram para a emergência avisando que iam enviar pacientes queimados de uma usina de cana-de-açúcar. O hospital da região não tinha condições de atendê-los e mandou, sem consultar, as ambulâncias para o Antônio Pedro”, conta. Essa era a realidade: um sistema desarticulado e ineficiente, diz o médico em seu livro.

Abertura da 8ª Conferência Nacional de Saúde, em Brasília (DF), em 1986, evento fundamental para a criação do SUSImagem: Tadashi Nakagomi/Folhapress

Aliás, o Rio, diferentemente de outras cidades, tinha uma estrutura de rede hospitalar melhor porque foi capital federal, lembra o médico. Mesmo assim, não era suficiente. “A saúde pública na época tinha o foco na doença, mas sem nenhuma organização.”

‘Medicina brasileira tem um antes e depois do SUS’

“A medicina brasileira se divide em um antes e depois do SUS, mesmo com todos os defeitos que ele tem”, diz Josier Vilar, professor por 25 anos na UFF (Universidade Federal Fluminense). Ele atuou como médico no Hospital Municipal Rocha Maia (RJ) e hoje é empresário.

Carro da secretaria de Saúde usado na campanha da vacina Sabin (contra a poliomielite), em 1969Imagem: Folhapress/Acervo/Folhapress

Vilar destaca a criação do PNI (Programa Nacional de Imunizações). “Foi o grande programa brasileiro só possível de ser implantado por causa do SUS.”

E essa lembrança tem motivo: nascido em Caicó (RN), Vilar viu de perto os amigos de infância afetados pela poliomielite.

O que me marcou muito foi ver colegas com paralisia infantil. Mas o que me deu alegria foi ver o doutor [Albert] Sabin [criador da vacina contra a poliomielite] aqui no Brasil para desenhar um programa de vacinação contra a doença. Josier Vilar, médico

Inauguração de posto de saúde no bairro da Vila Maria, em São Paulo, na década de 1950Imagem: Arquivo/Estadão Conteúdo

Quando estudou em Niterói, o médico trazia crianças com diagnóstico da doença para tentar evitar o agravamento do quadro. “A chegada da vacina só aconteceu porque existia um sistema de saúde para implantá-la.”

Os desafios do SUS

Mesmo defendendo e lutando pelo SUS, os médicos sabem que o sistema está longe do ideal.

Uma pesquisa com 1.500 brasileiros, em 2024, mostrou que brasileiros da classe C são impactados pela longa espera no SUS. 60% afirmam que o tempo de espera para consultas com especialistas é muito longo. A mesma reclamação vale para exames (56%) e consulta com clínicos gerais (46%).

Foto de 2016 mostra pacientes em fila, reclamando de falta de atendimento no Hospital Estadual Albert Schweitzer, no RioImagem: Fabiano Rocha / Extra / Agência O Globo

No mesmo levantamento, feito pelo Instituto Locomotiva, 94% concordam que reduzir o tempo de espera para consultas e exames deveria ser uma prioridade.

O tempo de espera é, na opinião de Paulo Buss, um dos principais problemas, sobretudo no atendimento secundário (acesso a especialistas, por exemplo, cardiologista) e terciário (hospitais de grande porte, acesso a cirurgias, por exemplo).

“A atenção primária é muito bem resolvida. O problema é essa assistência secundária, principalmente as internações e cirurgia.”

Para Vilar, o SUS precisa se fortalecer. Assim como Buss, ele acredita que os serviços secundários e terciários devem melhorar.

SUS ainda tem desafios: na opinião de especialistas, é preciso reduzir o tempo de esperaImagem: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Precisamos de um sistema transparente que diga quando vou receber meu tratamento. Não é razoável que uma mulher com câncer de mama espere e perca a chance de curar a doença. Não adianta dar o diagnóstico e não o tratamento. Josier Vilar

Fonte adicional: “SUS: uma biografia: lutas e conquistas da sociedade brasileira” (Record).

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