‘Falar de racismo e de intolerância religiosa é a mesma pauta’, diz Yalorixá Jaciara Ribeiro, filha de Mãe Gilda de Ogum

No Dia de Combate à Intolerância Religiosa, a sacerdotisa analisa os desafios enfrentados na luta antirracista no país

Nesta terça (21), completam-se 25 anos da morte da Yalorixá Gildásia dos Santos, a Mãe Gilda de Ogum. Fundadora do Axé Abassá de Ogum, em Salvador (BA), Mãe Gilda se tornou símbolo de resistência das religiões de matriz africana e da luta contra a intolerância religiosa, sobretudo após seu terreiro ter sido invadido e depredado. 

Foi o racismo e a intolerância que também tiraram a vida da Yalorixá, que faleceu no ano 2000. A saúde da sacerdotisa foi severamente abalada após ataques promovidos pela Igreja Universal do Reino de Deus e por agressões físicas e verbais promovidas por seguidores de igrejas neopentecostais. Para homenagear a luta e memória da ancestral, em 2007 o presidente Lula sancionou o dia 21 de janeiro como Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa por meio da Lei nº 11.635. 

O busto de Mãe Gilda no bairro de Itapuã, em Salvador, é símbolo da luta contra a intolerância religiosa / Secom / Governo da Bahia

Desde a morte de Mãe Gilda, é sua filha biológica, a Yalorixá Jaciara Ribeiro, que está à frente do Axé Abassá de Ogum e luta para manter viva a memória da matriarca. Na avaliação da sacerdotisa, o principal avanço que tivemos ao longo dos últimos 25 anos é a visibilidade dada à luta contra a intolerância.  

“O avanço que eu vejo é a possibilidade de um caso tão emblemático como o da morte de Mãe Gilda se tornar um ícone de luta e ser um estímulo para as pessoas denunciarem. Então para mim o avanço é a visibilidade dada aos outros casos de racismo e de intolerância religiosa, que vai muito além do caso de Mãe Gilda”, destaca.

No entanto, a Yalorixá critica a falta de políticas públicas para enfrentar esses problemas e de orientação sobre as formas de denunciar os casos de violação de direitos.

“A falta de uma maior colaboração da mídia e a limitação das políticas públicas faz com que alguns terreiros que não têm diálogo com a mídia, ou mesmo acesso à internet, terminem não sabendo como denunciar. Não sabem, por exemplo, que para denunciar casos de racismo e intolerância religiosa além de ir na delegacia, também podem procurar o Ministério Público”, salienta a Yalorixá.

Dados alarmantes

Mesmo com a dificuldade da população em acessar os mecanismos de denúncia, dados do Painel da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, apontam que em 2024 foram registrados 3.853 casos de violações de liberdade de religião ou crença, quase o dobro do ano anterior, em que o serviço registrou 2.124 casos. Em 2023, levantamento da startup JusRacial apontou que um terço dos processos por racismo em tramitação nos tribunais do país envolviam intolerância religiosa. Mãe Jaciara ressalta a relação entre os dois problemas:

“Para mim intolerância religiosa é racismo, porque atinge uma comunidade que tem endereço, nome e cor. Então falar de racismo e falar de intolerância religiosa para mim é a mesma pauta”. 

A Yalorixá Jaciara Ribeiro ressalta que é necessário avançar em políticas públicas para enfrentar o racismo e a intolerância / Arquivo pessoal

A Yalorixá também destaca o retrocesso que a luta antirracista enfrentou no governo de Jair Bolsonaro, cujas consequências ainda se perpetuam. 

“A intolerância religiosa também ficou explícita na nossa sociedade por esse momento do governo que passou, da não democracia. De uma forma muito perversa, no governo que antecedeu o governo atual a gente teve muitas perdas de direito. Eu acho que ter tido um Presidente da República que excita a violência e que ensina a matar o povo negro é também uma forma de genocídio da nossa comunidade”, aponta.

‘Rei Yeshua’?

Na Bahia, os dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos apontam que houve 281 violações relacionadas à intolerância religiosa no ano passado. Um dos casos que ganhou repercussão nacional é protagonizado pela cantora Claudia Leite, que, durante um show em Salvador no mês de dezembro, substituiu o verso “saudando a rainha Yemanjá” por “eu canto meu rei Yeshua” na canção “Caranguejo”. 

A Yalorixá Jaciara Ribeiro e o Instituto de Defesa dos Direitos das Religiões Afro-brasileiras (Idafro) denunciaram a cantora no Ministério Público do Estado da Bahia (MPBA) por conduta “difamatória, degradante e discriminatória”. O órgão instaurou um inquérito civil e, para subsidiar sua atuação, irá promover no dia 27 deste mês uma audiência pública para debater medidas preventivas no âmbito cultural, educacional e legislativo para garantir o respeito e a dignidade das comunidades afro-brasileiras, em especial os povos de terreiros. 

Em nota divulgada pelo MPBA, os promotores de Justiça Lívia Vaz e Alan Cedraz destacam que é necessário “promover uma ampla discussão com representantes dos setores público e privado, da sociedade civil organizada e das comunidades religiosas, sobretudo de matriz africana, sobre os impactos de ações dessa natureza para a honra e dignidade dos povos de terreiros, bem como para a proteção do patrimônio histórico e cultural envolvido”. A audiência será realizada às 14h na sede da Instituição em Nazaré, Salvador.

Arrastão pela Liberdade

Em memória à Mãe Gilda de Ogum e para fortalecer a luta pela liberdade religiosa, o Axé Abassá de Ogum irá realizar no próximo sábado (25) o ‘2º Arrastão pela Liberdade’. Com apresentações de cantores e blocos afro, como Filhas de Gandhi e Malê Debalê, o cortejo irá tomar as ruas de Salvador até a Lagoa do Abaeté. A concentração será às 8h na sede do terreiro. Apesar dos desafios, Mãe Jaciara também traz uma mensagem de esperança e ressalta que o Candomblé é uma religião de amor e união.

O candomblé é uma religião diretamente conectada à natureza e que cultiva os elos familiares / Reprodução – redes sociais

“O candomblé é uma religião que cultua a própria natureza, o amor e cria uma comunidade, recriando laços familiares. Que os orixás nos dêem equilíbrio e nos dêem força para a gente seguir. Estar pisando em um território de ancestralidade nos dá força para seguir. Que os orixás nos protejam e que a gente possa ter equilíbrio e usar muito abebé de Oxum. É só você se ver no outro, que você dá para ele o que você quer para si. Assim a comunidade poderá viver livre e emanada com amor, com equilíbrio e com a proteção dos Orixás”. 

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