Feminicídio, Estado Penal e crime hediondo

Neste dia 8 de março a presidenta Dilma Rousseff sancionou a lei que torna crime hediondo o homicídio qualificado por gênero. Ou seja, fica assim tipificado o feminicídio.

Por Sueli Feliziani, do Revista Geni

A decisão foi comemorada por setores da luta das mulheres e do movimento feminista, anunciando-se como um avanço na punição dos crimes de gênero que, entre 1980 e 2010, tiveram no país um aumento de 2,3 para 4,6 assassinatos a cada 100 mil mulheres, o que colocou o Brasil como 7º no ranking mundial de feminicídios. Entre 2000 e 2010, foram 7 mil assassinatos. E 41% destas mulheres foram mortas em suas próprias casas, muitas por companheiros ou ex-companheiros.

Parece um avanço inegável na punição do assassinato de mulheres, mas algumas condições éticas e jurídicas devem ser analisadas antes de se comemorar tão enfaticamente sua contribuição para a luta das mulheres. E, principalmente, para a luta das mulheres pretas: as mais afetadas pela violência doméstica e pelo feminicídio.

Observando mais atentamente a emenda sancionada, passamos da sensação de uma medida acertada e necessária para a de uma lei de caráter simbólico que aumenta o poder do Estado Penal e a aparência de justiça sem, no entanto, aumentar de fato o caráter punitivo da lei. O homicídio qualificado, pelo nosso código penal, já era crime hediondo. E gênero pode ser usado assim como qualquer outro qualificador. A lei também não dá respaldo teórico inequívoco à punição do assassinato de mulheres, uma vez que deixa a cargo do juiz e do método investigativo determinarem as condições para que o qualificante seja ou não aplicado. Se pensarmos numa polícia e num judiciário que costumam culpar a vítima e alegar motivos passionais para agressões e abusos contra mulheres e minorias, que têm um histórico de não investigar estupros, assassinatos e outros crimes de gênero e que libertam assassinos confessos de mulheres, seria pouco realista esperar muita efetividade desta abordagem da qualificação.

Além dos problemas acima citados, a lei não se aplica a todas as mulheres, já que exclui mulheres trans de seu escopo. E o que dizer das mulheres negras? No Brasil, segundo o Mapa da Violência, 61% dos feminicídios são cometidos contra mulheres negras. De que forma estas mulheres se beneficiariam, se é que se beneficiariam desta lei?

Nós sabemos da efetividade do Estado Penal em julgar e punir pobres e pretos. Portanto, não seria nenhuma surpresa se os contemplados com a dureza das novas penas propostas fossem justamente pobres e pretos. Assim como ocorre nos casos de agressão contra mulheres e até mesmo de assassinatos, em que brancos e ricos nunca têm de enfrentar o recrudescimento do sistema de penas aplicado. De um lado, o dos pobres e pretos, o Direito praticado é o extremo da doutrina. De outro, o dos brancos e ricos, com maior acesso a serviços jurídicos, temos o extremo de um Direito flexível onde critérios de ampla subjetividade são levados em conta nos julgamentos e sentenças. Nesse sentido, a ampliação do Estado punitivista anda de mãos dadas com o genocídio da juventude preta e com os pedidos de diminuição da maioridade penal, que criminaliza adolescentes em situação de precariedade social.

Sem advogar em favor de assassinos de mulheres e não ignorando a realidade de pessoas que devam cumprir com seus deveres para com a justiça, para cada homem negro preso, neste enorme contingente carcerário do país, dos quais 78% são pretos e pobres, nós temos pelo menos uma mulher. Mães, esposas, irmãs e outras vítimas colaterais de um Estado punitivista, que passarão por revistas vexatórias e serão humilhadas em filas nas madrugadas carregando suas marmitas e provisões. Elas próprias criminalizadas e desumanizadas mais uma vez pelo Estado racista.

Como pode, então, uma medida que aumenta o poder do Estado Penal ser uma medida de empoderamento e segurança para as mulheres negras, se os efeitos colaterais de medidas como esta acabam reverberando nas comunidades pobres e negras como mais uma herança do racismo institucional e policial e da seletividade da justiça? As comunidades negras devem estar alerta para os avanços do Estado Penal em medidas que pretendem a morte ou encarceramento de um contingente cada vez maior de negros e negras.

Sabendo da eficiência do Estado em punir de forma seletiva de acordo com raça, classe e origem, três recortes mais do que necessários, como pensar em uma abordagem para crimes de gênero, crimes raciais ou contra minorias sem incorrer na penalização de outras minorias? Seria a criação de novas leis realmente a melhor solução dentro de um sistema que penaliza de acordo com uma estrutura de poder extremamente bem fundamentada e que ignora o componente ético do crime de ódio?

Em casos de crimes de ódio e raciais também vemos um histórico de incompetência da polícia em tratar de assuntos de cunho ético e de direitos humanos. Grassam a impunidade e as penas pífias para ofensas e agressões severas praticadas em espaço público contra minorias sem que estas ações sejam investigadas e punidas com a devida eficiência. O descaso do judiciário e do sistema policial com minorias sociais é o padrão. Recrudescer leis ou criar mais delas, neste contexto, é ineficiente porque o sistema penal é seletivo e atua com extrema diligência na criminalização de movimentos sociais e camadas vulneráveis da população enquanto ignora crimes de ódio e discursos de intolerância.

Haveria soluções possíveis em termos de educação para a não-violência de gênero (para a erradicação da violência de gênero), mas envolveriam soluções drásticas que mexeriam no próprio sistema de forma estrutural, ainda mais se pensarmos que o machismo e o patriarcado são estruturas de poder e, como tal, são naturalizadas. Fazem parte dos processos e lógicas de funcionamento desse sistema. Da mesma forma que o racismo, a transfobia, a homofobia e outros crimes de ódio. Isto demandaria tempo, muito investimento em educação e reabilitação. Uma mudança drástica na forma de enxergar a pessoa humana dentro do sistema.

É hora de trazer toda a sociedade para um debate público que levante formas de atuação social sem que precisemos recorrer ao Estado Penal para a nossa proteção, dado que leis tratadas como fins criam um estado de dependência bastante nocivo que não incide substancialmente nas problemáticas sociais, em especial a de gênero.

O Estado Penal mata. Mata preto. Mata pobre. Mata mulher. Mata LGBT. Mata por ação. Mata por omissão. Por desumanização. Polícia não é proteção pra quem não é status quo. Tem que haver outros caminhos.

Ilustração: Emilia Santos

+ sobre o tema

Islândia é o primeiro país a tornar ilegal o pagamento de salário menor a mulheres

Órgãos governamentais e empresas do setor privado passam a...

Por que a campanha da Always não é tão legal quanto parece

A ONG Safernet, parceira da marca, chegou a publicar...

Pai separado terá de pagar parto da ex-companheira, decide tribunal

Homem contestou decisão da ex de descartar serviços do...

Serviço militar obrigatório e outros argumentos fajutos contra o feminismo

Zézinho adooooora mandar feminista lutar pelo trabalho militar forçado...

para lembrar

100 vezes Cláudia Silva Ferreira, por Olga

  A mulher arrastada pela Polícia Militar tinha nome –...

Com adesão de celebridades, feminismo entra no vocabulário pop

Defesa dos direitos das mulheres invade indústria do entretenimento...
spot_imgspot_img

Feminicídio: 4 mulheres são mortas por dia no Brasil — por que isso ainda acontece com tanta frequência?

Mariele Bueno Pires, de 20 anos, foi achada morta em casa, em Ponta Grossa, no Paraná, em 23 de agosto. Em seu corpo seminu,...

Feminicídios no DF cresceram 45% neste ano em relação a 2022

Faltando quatro meses para acabar o ano, o número de mulheres assassinadas em 2023 no Distrito Federal (DF) já supera em mais de 45% os...

Feminicídios no DF cresceram 45% neste ano em relação a 2022

Faltando quatro meses para acabar o ano, o número de mulheres assassinadas em 2023 no Distrito Federal (DF) já supera em mais de 45% os...
-+=