Feminismo e política em tempos de retrocessos

Com a ruptura do diálogo com os movimentos feministas e suas pautas, consolidada com o golpe de 2016, iniciou-se a ruptura do diálogo com todos os setores populares progressistas da sociedade civil.

Por Flávia Biroli Do Blog da Boi Tempo

Vivemos, no Brasil, um momento interessante para a reflexão sobre a participação política das mulheres. Não fossem trágicos os desdobramentos da deposição da primeira mulher a chegar à Presidência da República no país, poderíamos até nos satisfazer com o que há de instrutivo em processos que colocam às claras os limites das democracias contemporâneas. A deposição de Dilma Rousseff pôs fim aos canais de diálogo entre governo e movimentos feministas que, com diferentes graus de institucionalização e de efetividade, existiram desde a transição, nos anos 1980. Minha hipótese é de que o rompimento desse diálogo é mais do que a ação de “velhos políticos” (que, é bom lembrar, nunca deixaram de ser atuais), que transformam seu desprezo pela cidadania das mulheres em política de Estado. Trata-se de um ajuste, sintonizado com a reação conservadora em curso. A restrição da democracia e o aprofundamento das desigualdades contidos nessa atualização perversa do projeto neoliberal têm fortes componentes de gênero.

Em uma análise já muito discutida, contida no livro O populismo na política brasileira (Paz e Terra, 1980), Francisco Weffort afirmava que “com a exclusão política das massas populares”, efetuada pelo golpe de 1964, iniciava-se “a exclusão política de quase toda a sociedade civil”. Não pretendo, aqui, discutir o mérito da perspectiva então assumida pelo autor sobre o populismo e as alianças que prevaleceram no pré-64. Trago essa citação para propor um paralelo com o golpe de 2016, que assim enuncio: com a ruptura do diálogo com os movimentos feministas e suas pautas, iniciava-se a ruptura do diálogo com todos os setores populares progressistas da sociedade civil.

A complexidade desse processo se amplia porque a ruptura do diálogo com os movimentos ocorre no momento em que o feminismo se torna mais presente, de forma capilar, na sociedade brasileira. Valores e slogans nunca foram tão vocalizados, enquanto os obstáculos históricos para a participação política feminina se aprofundam em reações que contestam a posição das mulheres como sujeitos de direitos e de ação política e o feminismo como campo de luta e de conhecimento.

Existe um paralelo entre o grau de permeabilidade do Estado aos interesses populares e o grau de incorporação das pautas feministas na história recente do Brasil. É claro que a conquista de direitos pelas mulheres não se faz, necessariamente, na contramão dos interesses dominantes. Pode, por exemplo, haver avanços nos direitos sexuais e reprodutivos e nas exigências de equidade na remuneração de mulheres e homens, enquanto as taxas de exploração do trabalho e a concentração de renda se ampliam, aprofundando desigualdades de raça e de classe. São conhecidas as críticas de filósofa estadunidense Nancy Fraser ao que tem percebido, no hemisfério norte, como um feminismo domado pela incorporação de suas pautas pelo neoliberalismo, algo de que já comentei em coluna anterior.

Por aqui, as coisas são há muito distintas e vemos um forte entrelaçamento – embora também disputas e tensões – entre os movimentos feministas e o campo progressista, no qual pautas mais amplas de justiça social já foram mais palatáveis do que as pautas de gênero que traziam críticas aos fundamentos das relações e das subjetividades. Hoje, em especial, estamos diante de uma situação que exige que qualifiquemos nossas análises e nossa ação: as pautas conservadoras – em que têm destaque a recusa de direitos sexuais e reprodutivos e a sempre mobilizada “defesa da família” – estão articuladas ao aprofundamento do projeto neoliberal, retirando direitos e ampliando as desigualdades de gênero, de raça, de classe e de renda. As mulheres são atingidas de forma específica porque seu engajamento no trabalho cotidiano não-remunerado na esfera familiar ainda faz delas um segmento mais exposto ao desemprego, à precariedade e a ocupações mal remuneradas, apesar de terem hoje acesso à educação formal em níveis superiores aos dos homens. O recuo do Estado se dá ao mesmo tempo que se fortalece o recurso ideológico à importância da família convencional e, nela, o reforço ao papel da mulher como cuidadora e trabalhadora não remunerada. Vale lembrar que é a partir desse papel que se estabelece o julgamento das vidas e famílias reais, aumentando também a discriminação e a violência contra aquelas que não se enquadram a visões restritas sobre seu papel na sociedade.

Há, assim, boas razões para avançarmos no fortalecimento de uma luta feminista que confronte o neoliberalismo, sem que isso signifique deixar de lado a crítica à dominação masculina no cotidiano das relações e dos afetos, que se expressa na dupla moral sexual, de que a violência se alimenta, e na divisão injusta do trabalho. Ambas estão contidas e naturalizadas na defesa “da família” pelos setores conservadores.

A centralidade do capital na conformação das políticas macroestruturais (alocação de recursos para investimentos, definição da política fiscal e da política de juros) e na configuração das disputas políticas (pelo financiamento direito das campanhas, que é uma aposta no exercício direto de influência) não foi reduzida em nenhum momento em nossa história recente. Mas os pactos políticos que configuram o Estado podem incorporar em graus diversos as pressões dos setores populares, traduzidas em políticas salarias, alocações de recursos, regulação das relações de trabalho. Isso influencia as condições em que vivenciamos nossas relações, tem impacto no nosso acesso a tempo e recursos, nas relações de trabalho, no acesso à saúde e nas nossas perspectivas para envelhecer com dignidade. Apesar do pacto conservador que orientou o processo de transição, a Constituição de 1988 foi moldada também por pressões do campo progressista. Tornou-se, assim, um marco que, apesar dos avanços do neoliberalismo nos anos 1990, referencia ainda hoje os debates e as lutas políticas. Por isso, a investida em curso contra os direitos tem como alvo garantias constitucionais.

As oportunidades para a atuação dos movimentos feministas junto ao Estado têm sido distintas desde o processo de transição. Desde os anos 1970, movimentos organizados têm exercido pressão de fora e buscado condições para atuar nos âmbitos partidário e estatal, enfrentando como obstáculos a ossatura patriarcal do Estado e as hierarquias sexistas que se atualizam no cotidiano da política. Do combate à ditadura à composição de pautas que diziam respeito à posição específica das mulheres nas relações de poder, um processo complexo de diferenciação e construção de alianças se estabeleceu, analisado naquela que é ainda a principal obra sobre os movimentos feministas no período da transição, Engendering democracy in Brazil, de Sonia Alvarez (Princeton University Press, 1990).

As mulheres foram pouco mais de 5% dos parlamentares eleitos para a Assembleia Constituinte, reunida entre 1987 e 1988 para a definição da nova constitucionalidade. E poucas, entre as eleitas, tinham alguma identificação prévia com pautas feministas. O Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres (CNDM), criado em 1985 e vinculado ao Ministério da Justiça, foi a primeira estrutura institucionalizada de representação das mulheres no Governo Federal e exerceu papel de destaque na defesa dos direitos das mulheres naquele momento. Do diálogo com mulheres de diferentes movimentos sociais, foi produzida a Carta das Mulheres aos Constituintes, na qual a responsabilidade social do Estado nas áreas de educação e saúde, a regulação do trabalho para que existissem garantias para trabalhadoras e trabalhadores, o direito à saúde pública universal gerida com participação popular, o acesso à seguridade e a exigência de reforma agrária apareciam em conjunto com a eliminação de qualquer descriminação e o respeito à autonomia das mulheres.

O preâmbulo da Carta, menos comentado que os pontos acima, continha uma ameaça de desobediência civil: “não nos sentiremos obrigadas a cumprir leis para as quais não tivemos voz nem representação”. Com uma ordem constitucional que eliminava as desigualdades formais entre mulheres e homens e ampliava as possibilidades de institucionalização de organismos de representação e de espaços de participação, as disputas relativas ao gênero foram levadas a novos patamares. Mas as mulheres continuaram pouco presentes em espaços cruciais para o avanço das suas pautas. Dez anos depois da publicação da Carta, em 1997, a legislação brasileira passaria a exigir um mínimo de 30% de mulheres nas listas de candidaturas dos partidos políticos para as eleições proporcionais. Trinta anos depois, neste ano de 2017, a presença das mulheres permanece muito aquém dos 30% da reserva nas listas e temos uma situação ainda mais delicada do que aquela que se apresentava em 1987.

Com o golpe de 2016, movimentos feministas e outros setores alinhados a pautas de justiça e equidade foram afastados para posições ainda mais distantes dos centros de decisão, agravando o desequilíbrio no acesso aos espaços decisórios. De nossa posição precária no exercício de voz e de representação, talvez devamos mais uma vez registrar que se não participamos da confecção das regras do jogo, se a lógica que as conforma não é democrática, não nos sentimos na obrigação de cumpri-las.

A crise atual não é, no entanto, feita de desvios. O que ela faz é tornar mais agudos padrões de exclusão que conformam as democracias contemporâneas. Para dar um exemplo no âmbito da participação das mulheres no Governo Federal, a deposição de Rousseff deu lugar a um governo tão afastado das percepções e demandas das mulheres a ponto de não perceber que a nomeação de um ministério de homens brancos teria algum impacto negativo. Com isso, a presença de mulheres no primeiro escalão do governo foi situada como uma exceção, após um golpe marcado pela misoginia. Poucos anos antes, no entanto, quando Dilma Rousseff assumiu pela primeira vez a Presidência em 2011, a meta anunciada de nomeação de 1/3 de mulheres não pôde ser atingida. O resultado, que teria sido calibrado pela recusa dos partidos da base aliada a indicar mulheres, foi bem mais tímido, levando-as a 9 dos 37 ministérios então existentes.

A baixa presença das mulheres nas casas em que tem sido votada a retirada de direitos de toda a população se torna ainda mais significativa quando vista em conjunto com outras ausências, a das pessoas que exercem trabalho assalariado, a de trabalhadoras e trabalhadores do campo e a da população negra. As vozes que predominam no Congresso expõem a importância de que nossa crítica do patriarcado seja interseccional: é na convergência entre gênero, raça, classe, geração e etnia que seu timbre se define, na defesa de interesses que ecoam posições nas hierarquias que organizam a sociedade brasileira.

*

Antes de finalizar, gostaria de fazer um registro. Esse texto foi escrito pensando nas mulheres e nos movimentos feministas que atuaram no âmbito estatal, que atuam e atuaram nos partidos políticos, que se fizeram presentes nas Conferências de Políticas para Mulheres e depois vibraram e se frustraram com a incorporação e a recusa de pontos de pautas de seus documentos nas políticas adotadas pelo Estado. Mas foi escrito, também, pensando nas feministas autônomas e integrantes dos movimentos e coletivos que se multiplicaram nos últimos anos, participantes ativas dos debates atuais e das mobilizações nas ruas nos anos recentes, mas talvez com uma relação mais tênue com o trabalho feito nas últimas décadas pelas mulheres do primeiro grupo, muitas das quais miraram seus esforços nos partidos políticos e nos sindicatos, buscando torná-los menos sexistas, e no Estado, buscando reduzir seu caráter patriarcal.

De certo modo, essa reflexão emerge das tensões que percebo no campo feminista hoje, entre a busca de espaço para a transformação dos partidos e do próprio Estado e a percepção de que esses espaços não são permeáveis às lutas feministas e de que o feminismo se realiza na autotransformação no cotidiano. Para quem se sente mais próxima dessa última visão, eu gostaria de dizer que o projeto neoliberal nos coloca justamente na posição de quem não pode existir para além do próprio cotidiano, enquanto destrói as possibilidades de que essa vivência cotidiana se dê com segurança, dignidade e prazer. Os feminismos nos ensinaram que a política permeia o cotidiano. Mas isso não significa que ela deixe de ser feita nos espaços institucionais, com efeitos sobre as nossas vidas. Uma crítica que se recuse a lidar com as políticas do cotidiano pode ser tão frágil quanto uma crítica que se recuse a encarar as implicações das instituições e do projeto neoliberal para as relações e para as vidas das mulheres.

***

Flávia Biroli é professora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, onde edita a Revista Brasileira de Ciência Política e coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades – Demodê, que mantém o Blog do Demodê, onde escreve regularmente. É autora, entre outros, de Autonomia e desigualdades de gênero: contribuições do feminismo para a crítica democrática (Eduff/Horizonte, 2013), Família: novos conceitos (Editora Perseu Abramo, 2014) e, em co-autoria com Luis Felipe Miguel, Feminismo e política: uma introdução (Boitempo, 2014).

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