Fernando Bandini: Quarto de despejo

Negra num país racista; mulher sob uma ordem patriarcal; pobre em sociedade voltada para o consumo desenfreado. Quais as chances de alguém assim realizar algum projeto pessoal? Mínimas ou nulas. Pois há quase 60 anos, uma brasileira chamada Carolina Maria de Jesus, catadora de papel e moradora da favela do Canindé, em São Paulo, lançou seu livro “Quarto de despejo – diário de uma favelada”, e alcançou sucesso extraordinário.

Por Fernando Bandini Do JJ

Foto: Obvious Mag

Naquele distante 1960, seu livro foi o mais vendido do ano. No Brasil, alcançou patamar de mais de 100 mil exemplares vendidos, rendeu traduções em 13 línguas e edições em dezenas de países. Semialfabetizada (ela cursou até o segundo ano primário numa escola de Sacramento, sua cidade natal, em Minas Gerais), apaixonada por livros, Carolina acalentava desde pequena o sonho de ser escritora. Escrevia em cadernos encontrados no lixo. Produziu poemas, letras para canções e romances, anotou provérbios e elaborou um diário com apontamentos de seu cotidiano.

Mãe solteira, com três filhos para criar, Carolina relata a vida de quem tirava o sustento do lixo. Saindo das margens do Tietê, perto do estádio da Portuguesa, ela percorria as regiões do Bom Retiro, Luz e o Centro atrás de papéis e metais para vender em ferros-velhos e conseguir alimentar sua família. Chegou ao Canindé em 1947 e de lá saiu em 1960, para uma “casa de alvenaria”, outro sonho registrado em diversas passagens do diário.

Foi “descoberta” pelo então jovem repórter Audálio Dantas, cuja pauta era as submoradias que cresciam ao lado do rio. Dantas editou o diário, mantendo a grafia e pontuação originais da autora e o livro foi publicado, com sucesso. Lírico e contundente, o texto de Carolina mostra uma realidade que tantos teimam não ver.

Carolina transformou-se na cinderela que deixou o lixão da margem do Tietê (ao lado da favela, havia um aterro clandestino em que empresas despejavam resíduos) para morar em Santana. As vendas do livro tiraram Carolina e os filhos da miséria, levaram-na para o centro do palco midiático.

E assim como apareceu, despertando a curiosidade de tantos, foi esquecida com a mesma rapidez. Morreu isolada, em 1977, num sítio em Parelheiros. Seu “Quarto de despejo” (há edição recente, da Ática) continua atual. A favela do Canindé não existe mais, clonada em milhares de outros núcleos de submoradias espalhados pelo país.

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