Festa de Quilombo: devoção e luta por direitos na Comunidade de Narcisa

Nas experiências dos africanos da diáspora e de seus descendentes, festejar é também um gesto de insurgência. É uma forma de expressar  ancestralidade, de  criar e recriar  tradições. Este texto é um convite para conhecer a Festa de Nossa Senhora do Livramento da Comunidade Quilombola de Narcisa. Por meio dessa celebração, percorremos as tradições, as dimensões de luta e as práticas de solidariedade dessa comunidade negra paraense. O festejo, que ocorre todo dia 30 de setembro, é vivenciado há cerca de  200 anos no quilombo pelos herdeiros dos casais fundadores: Nunes casado com Marcela e Felipe casado com Suzana. 

O território da Comunidade  Quilombola de Narcisa está localizado à margem esquerda do rio Guamá, na zona rural do Município de Capitão Poço, nordeste do estado do Pará. Segundo a memória local, os casais fundadores foram escravizados nas fazendas próximas, situadas no município de Ourém. Ali, na segunda metade do século 19, período que antecedeu à abolição, eles se refugiaram onde hoje vivem os moradores de Narcisa. Seus herdeiros e herdeiras recordam que a posse do território ancestral e a formação do grupo ocorreu pela realização do trabalho na plantação de roçados de mandioca, arroz, feijão e outras culturas agrícolas. Aos poucos, no local, foram construídas moradias habitadas por famílias resultantes de casamentos entre parentes. 

Em 2013, quando realizei a pesquisa de campo no quilombo para escrita de minha dissertação de mestrado, moravam no território  sete famílias. Na época, elas viviam em uma pequena área do extenso território, cuja parte foi construída ao longo de, pelo menos, dois séculos de ocupação. Atualmente, o grupo se autodeclara como quilombola. O caminho de construção dessa identidade começou em 1998. Somente em 2005, com a emissão da certidão de reconhecimento pela Fundação Cultural Palmares, teve início o longo processo  de titulação coletiva da terra, que ainda está inconcluso.  

A memória partilhada entre os negros e negras de Narcisa ocorre pela contação de histórias e pela repetição dessas narrativas. Uma prática que traz à tona tradições e a identidade cultural da comunidade. Dentre os aspectos socioculturais presentes no quilombo, destaco a Festa de Nossa Senhora do Livramento. Trata-se de uma celebração que mescla sagrado e profano, momento em que  o pertencimento do grupo étnico foi sendo construído.  A origem da festa está associada às atividades agrícolas, em especial aos mutirões para o roçado da mata e plantio das roças. Esse trabalho envolve riscos como ser atingido por árvores, picado por cobras e até mesmo morrer por exaustão. Por conta desses perigos, a devoção à Nossa Senhora do Livramento foi inserida. Isso ocorreu depois da morte do senhor Felipe Conceição dos Santos, um dos fundadores da comunidade, cujo falecimento aconteceu quando estava envolvido com o trabalho na derrubada. Desde então, os agricultores passaram a pedir à santa para protegê-los durante a essa etapa do trabalho, considerada a mais perigosa no processo agrícola.

Nossa Senhora do Livramento. Comunidade Quilombola de Narcisa, 2013. Fonte: Acervo pessoal da autora.

 De lá pra cá, anualmente, a celebração reúne ao mesmo tempo a homenagem à padroeira e o pertencimento com a terra dos ancestrais. Situação que atrai pessoas de muitos lugares e de interesses diversos. Por lá passam, os descendentes dos casais fundadores que hoje vivem dispersos em outros territórios da região. Os vizinhos que compõem a rede social do grupo de Narcisa também não ficam de fora, como os moradores das vilas próximas e dos indígenas, a exemplo do povo Tenetehar-Tembé da Terra Indígena Alto Rio Guamá. Há também pessoas que frequentam o festejo pelo simples desejo de apreciar o evento. A festa cria e reforça laços  entre a comunidade de parentesco e outras pessoas que não estão vinculadas ao quilombo. Isso ocorre porque o ajuntamento possibilita rememorar vivências como a partilha coletiva nos mutirões e nas brincadeiras, bem como relembrar histórias sobre parentes de várias gerações que estão vivos e também os que já falecidos. Com a finalidade de arrecadar recursos para realizar a celebração, é formado um fundo cerimonial. Por isso, a realização de  bingos, rifas e torneios de futebol se tornaram  costumeiras. Além daquilo que é angariado nessas ações, há doações provenientes dos membros da Companhia –  instituição composta pelos mordomos que cuidam do fundo cerimonial. Outros donativos são oferecidos por pessoas que tiveram promessas alcançadas, cujas ofertas podem ser em  dinheiro ou na forma de alimentos como porcos, galinhas, farinha, açúcar, café, bolos, entre outros. A mesa farta é uma característica da festa.

Oração antes da refeição. Comunidade Quilombola de Narcisa, 2013. Fonte: Acervo pessoal da autora.

Contudo a redução do território tem imposto mudanças nesse costume de ofertar alimentos com abundância, em que a carne de porco é o prato principal.Ocorre que a comunidade não consegue mais criar os porcos em quintal aberto como fazia antigamente. Tal  restrição foi sendo imposta porque a criação, ao entrar nos roçados dos vizinhos, gerava conflitos entre o grupo e o seu entorno. Agora, sob o cuidado das mulheres, um número reduzido de  porcos ficam confinados nos chiqueiros. Por conta disso, o grupo passou a  depender do recebimento de outros alimentos para realizar os  rituais da celebração e, aos poucos, a carne suína foi sendo substituída pela bovina. 

A estruturação da festa colabora com a criação de hierarquias internas.  Conforme descreveu a pesquisadora Joseline Simone Barreto Trindade, os festejos religiosos em comunidades negras rurais são  momentos que favorecem  a estruturação de  deveres, direitos e obrigações. Em Narcisa, a tarefa de organizar o evento é transmitida para os homens seguindo uma linha sucessória de geração a geração.  A  principal  referência é o senhor Macedônio Lucas dos Santos que, durante trinta anos, morou sozinho na área onde hoje é o quilombo. Sua  longeva permanência nas terras permitiu a reivindicação do grupo como remanescentes de quilombo, nos termos do direito criado na Constituição Federal de 1988, expresso no artigo 68. Partindo de Marcedônio, a função foi repassada ao seu sobrinho Raimundo Mendonça. Ele, por sua vez, passou a tarefa para seu filho Oswaldo Mendonça. Em 2013, observei que a tradição era mantida por Domingos Lucas dos Santos, conhecido como Chagas, e Teotônio Maria dos Santos. Na época, eles presidiam a Associação da Comunidade Quilombola de Narcisa. A transmissão dessa atribuição acontece por um tipo de aprendizado que, desde a infância, envolve o conhecimento de valores afetivos em torno do ritual. Enquanto a responsabilidade de organizar a festa segue a linha de sucessão masculina, a função de guardiã da santa é estritamente feminina. Dona Benedita Lucas dos Santos que,  em 2013, quando a encontrei,  tinha 83 anos, me contou que a imagem atual da santa foi comprada pelos moradores para substituir a antiga, que foi levada da comunidade por sua primeira dona e guardiã. Desta feita, a função de zeladora foi assumida por Maria Alcântara, e após seu falecimento foi designada para sua filha  Benedita. 

Outras atribuições também são desempenhadas como de juiz/a da festa e juiz/a da santa. Nesse caso, elas são exercidas por quem é de “dentro ou de fora” da comunidade, podendo ser uma única pessoa ou uma família. Aqui, as responsabilidades gravitam em torno da  doação de mantimentos e de fogos de artifícios, incluindo a participação nas atividades para a formação do fundo cerimonial. Como esta função é exercida de acordo com as promessas e graças alcançadas, o número de juízes e juízas pode variar a cada ano. 

Juíza da Festa (sentada) e Juíza da Santa (em pé). Comunidade Quilombola de Narcisa, 2013. Fonte: Acervo pessoal da autora.

Embora haja cargos definidos pela tradição, existe o envolvimento de todos  os membros do grupo de parentesco e dos devotos na organização da festa.  Antes do grande dia, acontece uma última reunião quando é  orientado o que cada pessoa fará durante o evento. As tarefas são distribuídas de acordo com gênero e idade e envolvem todo mundo: as pessoas que residem na comunidade e aquelas que vieram apenas para participar do festejo. Matar o gado ou os porcos, por exemplo, é uma atribuição masculina. Cozinhar e servir a comida, após a ladainha no barracão da festa, são ações realizadas pelas mulheres. As crianças participam de todas as atividades no desenrolar dos eventos, fazendo algo que foi pedido pelos adultos ou apenas observando os preparativos. A presença delas garante a continuidade da tradição. As pessoas idosas, apesar de dispensadas dos trabalhos  pesados, permanecem ativas observando, orientando e contando como era a festa no tempo dos primeiros moradores, em especial, quando elas atuavam na linha de frente.

 De acordo com as necessidades da comunidade, a festa foi ao longo do tempo incorporando novos elementos e  significados. Hoje, frente a luta pelos direitos territoriais e culturais, ela é apropriada como um traço da identidade dos negros e negras de Narcisa, que disputam narrativas sobre o grupo na arena social onde estão inseridos. O festejo possibilita a criação de um modo singular de reivindicar direitos que passa pelo fortalecimento dos vínculos afetivos e dos laços de parentesco. Conforme ensina o senhor Teotônio Maria dos Santos, é durante a celebração que os parentes “se olham” e se comunicam, que conhecem a sua gente: “Se não fosse a festa, era muito difícil a gente se olhar, conhecer a gente da gente”.

Assista ao vídeo da historiadora Raimunda Conceição Sodré no Acervo Cultne sobre este artigo:

Nossas Histórias na Sala de Aula

O conteúdo desse texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC): 

Ensino Fundamental: EF09HI04 (9º ano: Discutir a importância da participação da população negra na formação econômica, política e social do Brasil); EF09HI23 (9º ano: Identificar direitos civis, políticos e sociais expressos na Constituição de 1988 e relacioná-los à noção de cidadania e ao pacto da sociedade brasileira de combate a diversas formas de preconceito, como o racismo); EF09HI26 (9º ano: Discutir e analisar as causas da violência contra populações marginalizadas (negros, indígenas, mulheres, homossexuais, camponeses, pobres etc.) com vistas à tomada de consciência e à construção de uma cultura de paz, empatia e respeito às pessoas).

Ensino Médio: EM13CHS204 (Comparar e avaliar os processos de ocupação do espaço e a formação de territórios, territorialidades e fronteiras, identificando o papel de diferentes agentes (como grupos sociais e culturais, impérios, Estados Nacionais e organismos internacionais) e considerando os conflitos populacionais (internos e externos), a diversidade étnico-cultural e as características socioeconômicas, políticas e tecnológicas); EM13CHS502 (Analisar situações da vida cotidiana, estilos de vida, valores, condutas etc., desnaturalizando e problematizando formas de desigualdade, preconceito, intolerância e discriminação, e identificar ações que promovam os Direitos Humanos, a solidariedade e o respeito às diferenças e às liberdades individuais).

+ sobre o tema

“Eu nasci e me criei aqui”: o processo de reconhecimento do território quilombola do Vale do Iguape

“Organizem-se, é em legítima defesa, porque não há mais...

Aguinaldo de Oliveira Camargo e as multifaces de um ativista

Nossas histórias, a história da gente negra está recheada...

Classe trabalhadora negra entre o rural e o urbano (1920-1930)

Vamos falar sobre a classe trabalhadora negra entre o...

Clóvis Moura: um intérprete do Brasil

As ciências humanas brasileiras nos fornecem uma gama de...

para lembrar

Selo certifica produtos de procedência quilombola

Agricultores familiares, integrantes de associações, cooperativas ou empresas que atuem nas...

Quilombos Urbanos

Nos arredores das grandes cidades, escravos fugitivos plantaram...

Exposição fotográfica homenageia Comunidade Negra Arturos

Em homenagem aos 122 anos de Abolição da Escravatura...

Projeto do Estado resgata autoestima de comunidade quilombola

O projeto beneficia a comunidade de Brejão dos Negros...

É preciso ‘amazonizar’ o Brasil

Estive no "centro do mundo". É assim que a Amazônia é chamada pela jornalista Eliane Brum e eu acredito que ela foi muito feliz nessa definição....

Entre rios e matas: uma comunidade de negros em Gurupá (PA)

O que você sabe sobre a história da população negra na Amazônia? Angulado por essa questão, neste artigo, resultado da pesquisa desenvolvida durante o...

Ser negro-índio: a força das ancestralidades no Quilombo Itamoari (PA)

No final de julho deste ano, dados inéditos sobre a população quilombola divulgados pelo IBGE mostraram que no Brasil mais de 1.3 milhões de...
-+=