Grandes produções de Hollywood tendem a fazer com que o espectador de cinema (sobretudo o mais exigente) não tenha grandes expectativas quanto à qualidade da linguagem cinematográfica. Espera-se, em produções milionárias, retorno financeiro e, para tanto, somos imergidos em uma corrente sem fim de narrativas vagas e que sejam capazes de atrair (e agradar) o máximo de espectadores, já que nos blockbusters a própria linguagem atende mais a uma necessidade comercial do que propriamente artística.
De fato, A Mulher Rei é um filme milionário (custou US$ 50 milhões) e uma grande produção de Hollywood. Entretanto, não estamos diante de uma obra de cunho meramente comercial. Nem estamos, tampouco, ante uma narrativa pouco profunda. A produção de Viola Davis é um marco significativo, um divisor de águas que pode vir a ser apenas o pontapé inicial para que o mundo conheça, finalmente, histórias africanas do ponto de vista africano, e que representam as pessoas negras em toda sua complexidade. Histórias negras contadas por pessoas negras.
O mundo ocidental desconhecia a existência de um exército feminino de realeza até Pantera Negra e as defensoras de Wakanda, as Dora Milaje. A guarda real fictícia foi inspirada nas guerreiras Agojie, protetoras do Reino de Daomé do final do ano de 1600 até o final dos anos 1800. Um dos reinos mais ricos da época, Daomé, após a colonização, deu lugar ao que hoje conhecemos como o país Benin. Na contramão da cultura ocidental, Daomé praticava uma organização social em paridade de gênero: cada cargo político e religioso era ocupado por um homem e uma mulher, yang e yin, em equivalência e equilíbrio de poderes. Era outorgado, ainda que raramente, pelo rei, o título de Mulher-Rei (Kpojito, no idioma fon) a uma mulher que reinaria com ele em equivalência. A contaminação da cultura de Daomé com os costumes ocidentais impostos pelo colonizador extinguiram a tão avançada esquematização social.
A narrativa de A Mulher Rei é um recorte fictício da existência das Agojie, que no filme, são comandadas pela personagem de Viola Davis, Nanisca, a Miganon (general), cujo objetivo, além do treinamento das guerreiras, é também político, na medida em que ela luta para convencer o rei Ghezo (personagem de John Boyega, que de fato existiu) a não integrar o comércio de escravos oferecido pelo colonizador.
Conhecemos, paulatinamente, Daomé sob os olhos da personagem de Nawi (Thuso Mbedu), uma garota órfã que resiste ao casamento forçado e por isso é entregue às Agojie para integrar o exército real. Tal como a personagem, nos deslumbramos com as cores e a riqueza do palácio africano que nos é apresentado, e é de fato um deleite poder visualizar, nas telas do cinema, um reino africano próspero e sem as mazelas trazidas pelo homem branco. O filme, rodado inteiramente na África do Sul, teve sua produção desenhada por Akin McKenzie a partir de relatos escritos e ilustrações encontradas da época. O equilíbrio entre o vermelho terroso e o verde da natureza, que predominam no design de produção da realeza de Daomé, são complementados com o colorido de adornos e tecidos naturalmente coloridos (e há a delicadeza de tornar essa informação conhecida ao espectador). Há vida presente nas cores, e o diálogo entre a terra e o homem é latente.
A ideia de transmitir ao espectador a riqueza de Daomé, em contraste às imagens constantemente reproduzidas por Hollywood de um continente africano no geral pobre e sem beleza, é facilmente captada. Tanto pelo design de produção como no exuberante e belíssimo figurino desenhado por Gersha Phillips, a prosperidade transparece. A hierarquia das guerreiras é perceptível conforme o figurino a ela destinado. A diversidade dos corpos negros é exaltada por Phillips: as guerreiras não possuem um tipo físico único, pelo contrário, quebra-se a predominância de qualquer padrão de beleza ou força – todas as mulheres negras estão ali representadas, e são belas e fortes cada qual à sua individualidade.
Aliás, o grande mérito do filme (de produção quase que inteiramente feminina e negra) reside na forma como as mulheres negras são representadas: complexas, profundas, diferentes entre si, humanas. Mulheres que diferem em porte físico, em personalidade, tonalidades diversas da pele negra, todas guerreiras. Cada mulher negra possui uma história de fundo, de origem, um passado que é relevante, o que enriquece sobremaneira as personagens. É maravilhoso o universo exclusivamente feminino das Agojie. Vivendo numa parte exclusiva e privada do palácio do rei Ghezo, ali, elas são livres para, além do treinamento rígido, trabalhar, descontrair e dançar em conjunto. O sentimento de sororidade as une e as fortalece: esse o segredo das guerreiras. O temor causado pelas Agojie vai além de suas habilidades, e reside muito mais na força que essa união feminina representa.
O impressionante elenco não se basta, não se limita e nem depende de Viola Davis. A potência da presença de Lashana Lynch, como Izogie e Sheila Atim, como Amenza, emociona o espectador. Há, inclusive, uma quebra do ideal de super-heróis e super-heroínas pintados por Hollywood que se deve tanto ao roteiro quanto às habilidades das atrizes. Existe clareza na demonstração da guerra como um acontecimento terrível onde vidas são perdidas, o que contrapõe a romantização da violência presente em narrativas Hollywoodianas convencionais. E as heroínas da história carregam marcas dolorosas de suas lutas, sendo notório o cansaço que Viola Davis imprime à Nanisca, uma Miganon já grisalha com marcas físicas e psicológicas.
Mérito dessa produção tão cuidadosa é também a desmistificação das religiões de matrizes africanas. O longa bem contrasta a fé professada pelo povo africano e a chegada do cristianismo pelo colonizador, imprimindo um respeito profundo e uma naturalização necessária aos rituais religiosos do povo de Daomé. A belíssima trilha sonora de Terence Blanchard (de Uma Noite em Miami, Da 5 Blood e Infiltrados na Klan) finaliza a composição de elementos que casam com essa ideia de naturalização.
Hollywood só compreende a linguagem do dinheiro, diz Viola Davis em suas entrevistas. O sucesso absoluto de A Mulher Rei, líder de bilheterias no Brasil pela segunda semana, é a mensagem clara de que o mundo quer, pede e precisa ouvir histórias negras contadas por pessoas negras, histórias africanas muito diferentes daquelas contadas pelo viés poluído da colonização. A história precisa ser reescrita do ponto de vista da negritude, da exaltação das vidas africanas e seus descendentes pelo mundo. Rumo, enfim, à decolonialidade.
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