O Rio Grande do Sul também é terra de negros

Para quem vive em outras regiões do país, a exemplo do Sudeste, a ideia de que o Rio Grande do Sul é uma espécie de colônia alemã no Brasil é bastante comum. Para escrever este texto realizei previamente uma pequena enquete sobre o assunto. Perguntei a um grupo de 10 pessoas a opinião delas a respeito dos fenótipos dos gaúchos: São brancos, negros ou indígenas? Também indaguei sobre quais são os elementos culturais mais marcantes do Rio Grande do Sul. 

As respostas foram praticamente unânimes, com exceção de uma pessoa que tinha informações que fogem à regra comum sobre a temática. A absoluta maioria respondeu coisas como: “Pra mim o povo gaúcho é loiro de olho claro”; “Os mais brancos que existem”; “Branco alemão”. E sobre a cultura gaúcha, as respostas mais comuns foram churrasco, chimarrão, roupas tradicionais alemãs e Oktoberfest.

Essas percepções não estão completamente equivocadas e nem são apenas uma invenção da grande mídia. Segundo os dados do último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), realizado em 2010, a população branca do Rio Grande do Sul é de 83,2% e a população de pretos e pardos representa 16,1%. Mas é aí onde moram “os perigos de uma história única”, como diria a escritora Chimamanda Adichie. Para explicar melhor, compartilho uma experiência que observei e vivi. 

Entre março e junho de 2018, integrei o projeto de pesquisa Movimento Negro na Atualidade, desenvolvido por uma equipe do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Antirracista da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Gepear – UFRJ), com o apoio e o financiamento do Baobá – Fundo para a Equidade Racial

Entrevistamos 30 pessoas localizadas em 7 estados da federação e distribuídas pelas 5 regiões do país. Entre os resultados, constatamos que esse percentual de população negra no Rio Grande do Sul, mesmo minoritário, é responsável por uma participação bastante significativa na cultura e na história do estado.

Foi do Rio Grande do Sul que surgiram grandes personalidades negras como Oliveira Silveira, importante liderança do movimento negro desde a década de 1970 e um dos proponentes pioneiros da instituição do 20 de novembro como dia da consciência negra. Há também a professora Dra. Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, relatora do parecer que estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. 

Não bastasse isso, é naquele estado, compreendido como tão branco, onde existe o maior número de clubes sociais negros no Brasil, cerca de 57 organizações, conforme nos informa em entrevista para o filme Meu Chão – Clubes Negros do Rio Grande do Sul, a pesquisadora Giane Vargas Escobar, professora do curso de licenciatura em História da Universidade Federal do Pampa (Unipampa). Esses clubes são espaços de sociabilidade da população negra, muitos de tradição centenária, onde são realizados desde velórios a comemorações festivas, discussões políticas, bailes, entre outras atividades. É o caso da Associação Cultural e Beneficente 6 de Maio, fundada em 1956 na cidade de Gravataí, ativa até os dias atuais, conforme nos informou a então diretora da Associação, Cristiane Gomes, em uma das entrevistas produzidas para o projeto Movimento Negro na Atualidade

Diante dessa multiplicidade de elementos culturais e históricos da população negra sobre o Rio Grande do Sul, uma das descobertas de nossa pesquisa foi que em Porto Alegre há uma série de espaços de convivência e sociabilidade historicamente marcados pela intensa ocupação da população negra na cidade. É a isso que esse texto se dedica. 

A partir da iniciativa de algumas pessoas que integraram o Grupo de Trabalho Antirracista (GTA), da Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre (SMED), em 2008, criou-se um curso para tratar do assunto do antirracismo. Essa experiência abriu espaço para a estruturação de um projeto maior e mais ambicioso, que veio a se chamar Territórios Negros: Afro-brasileiros em Porto Alegre, conforme explica Manoel Ávila, um dos criadores do curso e idealizadores do projeto:

“O Oliveira Silveira era um cara que já tinha pensado sobre isso, dos territórios negros da cidade. […] no final desse curso a proposta foi a seguinte: ‘e se a gente arrumar um ônibus e fazer in loco, ao invés de olhar fotografias, slides. De sexta para o sábado a gente entra em contato com a Márcia e o Leonardo [integrantes do GTA] e no sábado de manhã tem um ônibus da Carrís [empresa municipal de transporte], conectado com a SMED e a gente, com o povo daquela oficina, faz esse percurso […] em 2010 ele se regulariza. 

O Territórios Negros logo ganhou força e adesão da população da cidade. Colégios públicos e particulares passaram a procurar o projeto, assim como universidades e pessoas ligadas a outros setores sociais, como membros de movimentos político de cunho antirracista, movimentos artísticos e lideranças religiosas de tradição afrodescendente. Ainda nas palavras de Manoel Ávila: 

“Em 2010 carregamos 2 mil alunos, em 2011 foi crescendo para 4 mil, 2012 foi para 8 mil. Eu sei que o máximo que a gente atingiu em um ano foram 14 mil alunos atendidos, entre escolas municipais, estaduais, alunos das universidades, de vários cursos… Aí em 2014 foi o boom. As universidades privadas, PUC […] A gente conseguiu uma coisa que era genial, que era transformar o ônibus em uma sala de aula em movimento, que para as crianças, para os jovens era uma coisa muito legal, sempre deu muito certo” 

Ônibus utilizado no Percurso do Territórios Negros. Fotografia de Bruna Teixeira/PMPA. (Fonte: Site da Prefeitura de Porto Alegre)

Nessa experiência de exploração de uma Porto Alegre negra, o ônibus passava por oito ou nove locais fundamentais para o conhecimento dessa história, como o Mercado Público, local histórico de grande circulação de pessoas e produtos, onde se acredita haver, no centro do espaço, um assentamento para Bará, que na religião de matriz africana chamada Batuque, praticada no Rio Grande do Sul, seria equivalente a Exú, orixá cultuado em religiões como Candomblé e Umbanda. Outro exemplo é o atual Parque Farroupilha, antigamente conhecido como Redenção, que foi um espaço de convivência da população negra no final do século XIX, no imediato pós-abolição.

Percurso realizado pelo Territórios Negros. (Fonte: Site do LHISTE- UFRGS).

O projeto Territórios Negros: Afro-brasileiros em Porto Alegre chegou ao fim no início de 2017, em decorrência de cortes orçamentários feitos após a entrada de um novo governo municipal. No entanto, por força da popularidade que o projeto inicial havia ganhado, o Laboratório de Ensino de História e Educação (LHISTE), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), trouxe um novo fôlego para a iniciativa. 

Em diálogo e colaboração com os movimentos de militância negra, lideranças de religiões de matriz africana, artistas, professores e estudantes, o LHISTE ofereceu cursos de extensão entre 2015 e 2019. As atividades tinham o objetivo de informar à sociedade que o Rio Grande do Sul, em especial Porto Alegre, também é terra de negros, apesar das tentativas de apagamento histórico sobre a relevância da população negra na capital gaúcha. 

Em 2018, baseados em pesquisas sobre a potencialidade pedagógica de jogos e no diálogo com a sociedade, o LHISTE criou o jogo As viagens do tambor, em que há cartas com a imagem de personalidades negras importantes para a história da cidade e um mapa com a reprodução simplificada dos lugares de memória que compunham o projeto inicial, para ampliar ainda mais a divulgação sobre a história negra da cidade.

Jogo “As Viagens do Tambor”. (Fonte: Site da LHISTE- UFRGS)

Porto Alegre e o Rio Grande do Sul, como um todo, têm sim uma inegável influência europeia, mas é preciso ter cuidado ao generalizar esse fato como se fosse o único relevante. Ainda são muito frequentes as narrativas históricas que, produzidas por uma perspectiva racista de supervalorização da experiência e do legado da população branca e apagamento, assim como desvalorização de quaisquer outras experiências e contribuições humanas, sustentam versões simplistas e enviesadas sobre a realidade, prejudicando o acesso ao conhecimento histórico neste país. 

Essas narrativas são produzidas e reproduzidas dentro e fora dos espaços institucionais de ensino de História. Por isso, iniciativas como o Territórios Negros têm um papel digno de atenção, visto que, em virtudes de seu caráter de diálogo e colaboração com diversos setores sociais, conseguiu penetrar nichos que também extrapolam os espaços tradicionais de ensino de História, tornando-se uma ferramenta importante na construção de narrativas históricas menos etnocêntricas e mais inclusivas e democráticas.

Assista ao vídeo do historiador Jorge Maia no Cultne.TV sobre este artigo:

Nossas Histórias na Sala de Aula

O conteúdo desse texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC): 

Ensino Fundamental: EF09HI04 (9º ano: Discutir a importância da participação da população negra na formação econômica, política e social do Brasil; EF09HI03 (9º ano: Identificar os mecanismos de inserção dos negros na sociedade brasileira pós-abolição e avaliar os seus resultados);  EF09HI26 (9º ano: Discutir e analisar as causas da violência contra populações marginalizadas – negros, indígenas, mulheres, homossexuais, camponeses, pobres etc. – com vistas à tomada de consciência e à construção de uma cultura de paz, empatia e respeito às pessoas); EF09HI36 (9º ano: Identificar e discutir as diversidades identitárias e seus significados históricos no início do século XXI, combatendo qualquer forma de preconceito e violência).

Ensino Médio: EM13CHS102 (Identificar, analisar e discutir as circunstâncias históricas, geográficas, políticas, econômicas, sociais, ambientais e culturais da emergência de matrizes conceituais hegemônicas (etnocentrismo, evolução, modernidade etc.), comparando-as a narrativas que contemplem outros agentes e discursos); EM13CHS204 (Comparar e avaliar os processos de ocupação do espaço e a formação de territórios, territorialidades e fronteiras, identificando o papel de diferentes agentes (como grupos sociais e culturais, impérios, Estados Nacionais e organismos internacionais) e considerando os conflitos populacionais (internos e externos), a diversidade étnico-cultural e as características socioeconômicas, políticas e tecnológicas).


Jorge Maia

Historiador (UFRJ) e doutorando em Educação vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRJ, pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Antirracista (GEPEAR). E-mail: jmjorgemaia@gmail.com; Instagram @jmjorgemaia

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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