A Pandemia de Covid 19 e a banalidade do mal

A expressão arendtiana “tempos sombrios” pode ser usada desmedidamente a muito tempo, mas desde o início de 2019 até os dias de hoje, vem sendo corriqueira, pontual e verdadeiramente compreendida por diversos indivíduos do planeta Terra. É tempo de guerra, sonhamos com a paz. É tempo de choro, enquanto almejamos os sorrisos. O bem quer espaço e o mal passeia livremente nas ruas, abraçando, sufocando impiedosamente.

Hannah Arendt escreveu o polêmico livro “Eichmann em Jerusalém” em 1999, resultado da narrativa sobre o processo e o julgamento de Adolf Eichmann, feito em 1961. Ele organizava as deportações de judeus, levando-os sem desvios para os campos de concentração. O que nos faz imediatamente demoniza-lo. Pensar o quanto ele foi monstruoso, logo, um ser humano terrivelmente ruim. A autora, criou sua tese central, sobre o conceito de banalidade do mal e apresentou ao mundo.

Sobre o conceito de Banalidade do mal, Andrade (2010, p.114) coloca que o “ mal é sem inspiração própria, porém não menos monstruoso em suas consequências”. Não que o mal seja comum, mas algo que esteja ocupando o espaço do que é comum. Ou seja, um ato mau “torna-se banal não por ser comum, mas por ser vivenciado como se fosse algo comum. A banalidade não é normalidade, mas passa-se por ela, ocupa indevidamente o lugar da normalidade” (ANDRADE 2010, p.114).

Para Hannah Arendt “O problema de Eichmann era exatamente que muitos eram como ele, e muitos não eram nem pervertidos, nem sádicos, mas eram e ainda são terrível e assustadoramente normais” (ARENDT, 1999, p. 299). Logo, aparentava ser um homem visto como normal, parecia ser um bom pai, filho e irmão. Assim, sua normalidade fez a autora buscar outros modelos explicativos para o mal.

Mas, como explicar o mal em tempos de Covid19? Onde ouvimos discursos doentios dos nossos governantes. Quando mais precisamos da ciência, dos profissionais da saúde e educadores, eles são inferiorizados por alguns indivíduos incultos, desonestos e perversos. Tais falácias chega aos ouvidos da massa diariamente, repetidamente, tornando-se lentamente parte na nossa vivencia e vistos como reais por muitos. Os rostos dos negacionistas vão se perdendo na multidão.

Negar a veracidade de fatos históricos, não reconhecer a existência de problemas morais, éticos e raciais, discordar da ciência sem conseguir discutir coerentemente sobre o assunto, são alguns resultados causados pelas falas maldosas pregadas conscientemente pelos seres que se intitulam melhores que a educação e a ciência. Muitos se nomeiam “cidadãos de bem”, discorrem sobre honestidade, família tradicional, sobre a importância de armar a população, sem esquecer de mencionar, que eles também usam a religião para disseminar preconceito e ódio. A maldade é enraizada em pequenas frases e gestos, nem percebemos chegar.

Nos acostumamos com as dores alheias, o mundo perverso, crimes, homofobia, racismo, lgbtfobia, gordofobia, xonofobia, vemos tais monstruosidades como banais, mesmo sendo desastrosos. Na Pandemia, os noticiários contabilizam mortes, os números são altos, assustadores, mas evidenciados diariamente, sem nomes, especificidades dos indivíduos, desumanizando-os. Nós, internalizando tais situações (mortes) como banais. Não que sejam normais, mas ocupam tal posição.

Negar a eficácia da vacina não contribui, diminuir auxílios financeiros a população mais pobre não melhora, fazer política suja em nome da pandemia não nos favorece, banalizar as mortes nos enfraquece como humanos, esquecer as máscaras e o álcool pode nos matar, o distanciamento físico é necessário mas não emocional. Nossa capacidade de empatia vem diminuindo drasticamente. Acordar desde sonho medonho é fundamental.

Acostumar-se com a mortes de amigos, parentes, vizinhos, desconhecidos, anônimos e famosos é uma banalidade do mal atual. É possível vislumbrar um planeta mais amoroso? Pensar um futuro inclusivo, sem fome, pandemia, preconceito? Corroboro com a filósofa contemporânea Arendt (1987, p. 7) onde afirma que “mesmo no tempo mais sombrio temos o direito de esperar alguma iluminação”.

Referencias

ANDRADE, Marcelo. A banalidade do mal e as possibilidades da educação moral: contribuições arendtianas. Revista Brasileira de Educação v. 15 n. 43 jan./abr. 2010

Arendt, Hannah. Homens em tempos sombrios. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

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