Eis-me aqui, de novo, descrevendo a branquitude, as suas sutilezas de poder e o seu Pacto Narcísico. Entende-se por este termo, cunhado por Cida Bento, o compromisso da branquitude para manter privilégios, mesmo simbólicos, de uma suposta superioridade. É um pacto de proteção mútua entre pessoas brancas, que comporta admiração, incentivo, aplausos e recompensas. Para isso, tudo que não pode se manifestar no seu interior, que ameace tal pacto, é descarregado em pessoas racializadas.
Saí da França para lançar o meu livro Cartas a um homem negro que amei, publicado pela Editora Malê. A primeira apresentação presencial foi em Porto Alegre. Antes mesmo de chegar no evento, soube que uma das mulheres que comporia a mesa para apresentar o livro, que eu nem sequer conhecia, achava-me “raivosa”. Perguntei à organizadora, que fez questão de dizer-me isto, de onde ela tirou esta conclusão. Ela respondeu que a pessoa tinha lido alguns dos meus textos e visto vídeos nas minhas redes sociais. Eu, então, disse não querer uma pessoa assim apresentando a minha obra, pois eu jamais participaria de uma mesa cuja convidada principal achasse raivosa. A minha interlocutora respondeu ser importante a presença daquela mulher, que, ao descrever como “fodástica” na cidade, é da área da saúde e estava cedendo, “generosamente”, o nome do seu instituto para o lançamento.
Esta foi a primeira violência que sofri: um diagnóstico que eu nem sequer pedi, de alguém que nunca tinha me visto antes. A segunda foi a sua transmissão, por outra mulher branca, que poderia ter me protegido, pois, foi ela quem se ofereceu para organizar o lançamento do meu livro, momento importante na vida de uma autora. Admito que subestimei estas microagressões, aceitando o convite. Mas, afinal, eram todas feministas!
Diante da Imagem de Controle que eu fui colocada, a minha única exigência foi querer uma mulher negra, feminista, compondo a mesa junto com a outra que havia dado o tal “diagnóstico”. Convidei, então, uma pesquisadora de migro agressões e racismo, psicóloga e advogada, que mora em Pelotas, há três horas de Porto Alegre. Expliquei o motivo do convite e ela, com empatia, organizou a agenda, cancelou atendimentos e programações para estar comigo naquele dia. E ainda levou mais duas mulheres pretas, estudiosas e experientes de pacto da branquitude.
Ao chegar em Porto Alegre, alguns dias antes do lançamento, a violência aumentou. A organizadora, novamente, disse-me que a profissional da saúde, olhou mais uma vez as minhas redes sociais, sem jamais ter falado comigo e disse-lhe: “Como você conseguiu fazer este encontro? Ela (eu) tem traços de sociopatia. Este evento promete”. Este último “diagnóstico” ela recebeu na minha frente, através do WhatsApp e fez questão de ler para mim, completando: “Eu respondi que entendo de pessoas, eu estudei filosofia existencial”. Diante do absurdo não tive palavras, apenas estupor! A sua resposta, além de demonstrar que as duas concordavam quanto ao fato de eu ser tachada de sociopata, mostrou que entre as duas, rolava algo muito estranho, uma espécie de competição para ver quem mais me definia, colocando-me numa arena para ser devorada.
O Pacto narcísico se manifesta no privilégio de simplesmente ter a fantasia de “estar por cima” e, claro, colocar alguém em baixo por simples conveniência, status ou vaidade e, por via de identificação projetiva, fazem uma cisão perversa onde o branco é a personificação do “bom, belo, justo, ponderado”. Já o negro é o “mau, agressivo, ameaçador, grotesco”. E, como o “outro” é “mau”, portanto, ameaçador, isso suscita e justifica qualquer ato violento contra ele. Nessa cisão, brancos minimizam ou simplesmente não enxergam a própria agressividade e a agressividade de membros do seu grupo e atacam, insultam e invalidam pessoas negras com naturalidade, como se fosse algo trivial e de pouca importância.
Partilhei isso com as três mulheres que vieram de Pelotas, durante o almoço que tivemos horas antes do evento. Concordamos que a naturalidade com que uma me violentava com as suas definições e a outra repassava-me, parecia ter o intuito de coagir-me, de minar a minha potência e, para falar a verdade, eu já estava morrendo de vontade de voltar para casa. A minha amiga negra disse: “Parece que armaram um circo para colocar uma mulher negra no meio e se divertirem com a tua cara”. Eu deveria ter caído fora, é verdade. Mas, diante de tudo organizado e, pelo carinho que eu tinha pela organizadora, além da gratidão por ela ter gastado tempo para aquilo acontecer, resolvi enfrentar aquele dia.
Pouco antes do lançamento, a organizadora recebeu outra mensagem da dona dos diagnósticos: “A Fabiane é melhor escritora que ser mediático.” (eu nem sou um ser mediático). E continuou: “Eu não acho a escrita dela truncada, como você falou (se referindo àquilo que a organizadora disse do meu livro). ELES são assim, é o modo deles, como o Rap, seco, porque a vida deles é dura”.
Eu tinha chegado dias antes e nenhuma das duas feministas, nem a do diálogo anterior ao lançamento, nem a fulana das mensagens fizeram questão de conhecer-me, falar comigo, trocar algumas ideias sobre o dia. Algo dizia “cai fora”, enquanto aquela parte que diz que precisamos cumprir com os compromissos, me fez ficar. Respondi à pessoa que me transmitiu tal mensagem que o Rap não é seco e que Emicida e Criolo são prova de afetividade e ternura. Mas, surpreendeu-me o fato das duas trocarem mensagens na minha frente, ler os comentários que se escreviam, como se eu não tivesse sentimento. Aliás, é bem provável que não tenham cogitado isto. Nós, negras, não somos suficientemente humanas e, somos vistas por elas como guerreiras, fortes e que aguentamos tudo. Até mesmo duas mulheres infantilizadas pelo racismo, praticando-o na minha cara sem nenhum pudor.
A primeira parte do evento seria um diálogo com uma feminista branca e, a segunda, o lançamento do meu livro com aquela que me achava raivosa, sociopata… e a minha amiga, mulher negra feminista. E, a situação que parecia não poder piorar, virou um show de horrores. A feminista que iria dialogar comigo, disse que não estava bem no dia do evento, enviando uma mensagem cancelando a sua participação. A organizadora, diante de mim, enviou um áudio falando de forma infantilizada, tratando-a como uma criança mimada, chamando-a pelas duas primeiras letras do seu nome e adulando-a: “Fulana, por favor, vem!”.
E o grande dia chegou. Nos dirigimos ao local mais cedo, carreguei mesas e cadeiras e a minha colega feminista, que dialogaria comigo, chegou e colocou-se num canto, sem interagir. A organizadora, novamente, veio até mim e disse: “Vai lá falar com ela. Ela é muito tímida, é muito mais expansiva nas redes sociais”. Fui lá “cuidar” da interlocutora branca, puxando assunto para ver se criávamos alguma conexão. Inútil! E tem mais, eu tinha lido o livro dela, ela não tinha lido o meu. A senhora dos diagnósticos foi a última a chegar, fazendo a sua entrada triunfal, chamando a atenção depois que tudo já estava pronto.
O evento começou, tinha muita gente, a maioria branca. Na primeira mesa, o meu “quilombo”, me olhando com ternura e apoio. Sentamos as três: a organizadora, a feminista branca e eu. A primeira começou nos apresentando dizendo sermos duas mulheres da margem. A segunda tomou a palavra e disse: “Eu não sou da margem, circulo em todos os lugares, no meio de políticos e intelectuais…” Chegou a minha vez. Eu disse: “A margem não é uma escolha ou algo que eu sinta, é uma imposição. Até hoje, mesmo sendo mulheres que chegaram em lugares de privilégio econômico, ainda somos confundidas com a empregada. Dona Terezinha, aqui presente, é uma advogada, tem uma casa na praia e até hoje batem na sua porta perguntando pela dona do imóvel.”
Depois nos perguntaram quem estava mantendo o status quo na sociedade e pediram para eu responder primeiro. Respondi que negros é que não eram, pois, não tínhamos poder nas estruturas, não estávamos em lugares de comando e decisões. A minha interlocutora, de forma passivo agressiva rebateu: “Eu não!” Como se eu a estivesse atacando ou me referindo a ela.
Continuamos…
Nos perguntaram se éramos a favor da legalização da prostituição. Ela defendeu a sua bandeira sabiamente. Quando chegou a minha vez, eu disse que também era, desde que o debate incluísse raça e classe, pois mulheres negras são aquelas que se prostituem nas beiras das estradas, são mais expostas à violência, não estão atendendo em motéis caros, escolhidos por elas. Citei a minha pesquisa de mestrado, onde falo que na Itália, mulheres negras africanas se prostituem em bairros industriais, em regiões precárias, enquanto mulheres brancas, além do preço do programa ser maior, estão em áreas mais nobres. De novo, a minha interlocutora, de maneira agressiva soltou: “E eu estaria na prisão se estivesse lá”. Novamente, eu não estava falando dela e nem a atacando. Algumas risadas de mulheres brancas… E, sem dar explicações, abandonou a mesa, foi para um canto do local, cercada por outras brancas e começou a chorar. Lágrimas de mulheres brancas publicamente é uma chantagem, pois elas sabem que isso comove o público quando lhes faltam argumentos e, assim, elas podem se passar por vítimas, virando o jogo. De agressivas, elas se tornam aquelas que precisam ser protegidas, pois o fenótipo e o gênero juntos as favorecem. Reparemos, a minha interlocutora disse que circula livremente numa sociedade patriarcal, mas não aguentou uma mulher negra racializando um debate!?
Partimos para a segunda parte. A minha amiga negra, vendo o clima, fez uma abertura linda sobre o meu livro. Ela falou da sua experiência de mulher negra, daquela da sua mãe, segurando a minha mão o tempo todo. A mulher que me achava raivosa só teceu elogios ao livro, não sem antes, tecer um, a si mesma: “Estamos aqui hoje, nós, mulheres inteligentes e sexys. Quem disse que inteligência não combina com beleza, né?”
Como disse o meu “quilombo” ali presente, horas antes: “Você vai ver que cachorro que late não morde, é só para demonstrar poder sobre você”. Dito e feito! Ela até comparou o meu livro ao romance “Torto Arado”, de Itamar Vieira Júnior e, a certo ponto, disse: “Eu vejo no seu percurso, muita racionalidade”. Olhem só, de raivosa e sociopata, depois da leitura de algumas páginas do meu livro, eu virei uma pessoa racional. Respondi que não conseguia dissociar razão e emoção, pois esta dualidade é uma visão cartesiana que não comungo.
A minha amiga, sabiamente, disse: “Fabi, você poderia falar dos diagnósticos que recebe constantemente?” Então eu disse que durante toda a minha vida, mulheres brancas tentaram definir-me, trago muitos exemplos no meu livro.
Enquanto a outra chorava, a discussão sobre o meu livro seguia. Eu até quis terminar logo pois, o ambiente já tinha sugado muito de mim e, de forma equilibrada, mantive-me ali, sem ofender ninguém. A minha amiga negra, ao meu lado, disse: “Não, Fabi, não vamos terminar assim, com pressa”. Ela fez um fechamento digno do nosso Feminismo Negro. No final, algumas pessoas vieram agradecer pela potência das nossas falas. A organizadora chegou até mim e pediu-me para ir falar com a feminista chorosa e fragilizada. Achei o pedido absurdo, mas eu só queria ir embora logo. Fui até ela e disse-lhe que se eu a tivesse ofendido, pedia desculpas, mesmo consciente que não tinha feito. Ela, fungando, disse estar tudo bem e ainda pediu uma dedicatória no meu livro. Finalmente, com as minhas três pretas, deixei o local e fomos para o apartamento onde elas estavam hospedadas. Pedimos comida e bebida e fomos digerir o acontecimento. As mulheres brancas, se dirigiram a outro.
No outro dia, a organizadora disse que eu fui dura, que outra mulher branca também disse que se fosse com ela, não teria problema nenhum, mas como era com a fulana que chorou, eu peguei pesado. Eu disse que ela estava colocando-me numa Imagem de Controle e que nós, mulheres negras, mesmo num debate de ideias, onde não ofendemos pessoas, não ferimos a dignidade de ninguém, somos vistas como raivosas e agressivas, às vezes pela forma apaixonada com que falamos. Ela, surpreendentemente disse: “Mas Elza Soares não é assim.” E continuou: “é a forma com que tu falas. Eu sabia que você colocaria a fulana (do diagnóstico) no bolso, mas a outra, teria que ter mais cuidado, é o jeito dela”. Estupefata, ouvia tudo aquilo. Disse-lhe: “Num debate, se espera que cada uma, dê conta das próprias emoções, pois não podemos tutelar quem a gente não conhece e está lidando na esfera pública. Se ela é tão frágil assim, não deveria aceitar convites para debater publicamente”. Ela retrucou: “Você deveria tê-la tratado como uma mulher da margem, ela é da margem”. Respondi: “Não é assim que ela se definiu”. A sua resposta foi: “Mas ela é, a sua amiga negra a tratou assim”. A minha amiga negra não a tratou assim, mesmo porque tratar alguém como “da margem” não é adular.
Bom, ela estava preocupada com a outra e nem sequer perguntou como me senti, atacada daquele jeito, vendo a feminista branca empoderada abandonar a mesa e se colocar num canto. Depois disso, fui bloqueada por ela nas redes sociais, mesmo tendo ido lá assegurar de que estava tudo bem.
Fui “diagnosticada” como sociopata, raivosa, dura, de temperamento difícil, a que “pega pesado” simplesmente porque racializei o debate da prostituição falando que o fenômeno difere para mulheres brancas e não brancas. Depois chamaram-me de racional demais sem ver que o meu livro é cheio de afeto, emoção, dor, desespero, amor e, em simultâneo, taxaram-me de emotiva, raivosa… Isso mostra quanto nossos corpos despertam afetos da atração e repulsão muito antagônicos e o quanto isso é um ato inconsciente para a branquitude de criminalização, patologização e, pior, desumanização das nossas existências.
Não adiantava argumentar, elas precisavam confirmar os diagnósticos do início, senão, o problema teria que ser enfrentado de outra forma, ou seja, mulher branca não aguenta o Feminismo Negro e usam táticas das mais variadas para nos silenciar. Quando lhes convém, somos todos iguais: “Eles são assim, secos” e, quando não, nos diferenciam, usando alguns como álibi, vide Elza Soares. E a organizadora continuava usando exemplos: “Fulano também falou que você foi dura”. Todos os “fulanos” que ela citava eram pessoas brancas. E, no final, disse que a amiga negra que eu convidei tinha roubado o meu brilho, pois as pessoas gostaram muito mais dela do que de mim e que era para eu brilhar”. E completou: “Cuidado com ela!” Esta tática de nos colocar uma contra a outra é corriqueira da branquitude, mas ouvir isto, sobre alguém que foi a única pessoa preocupada com a minha subjetividade, as minhas emoções e meu o bem-estar, doeu. Peguei um Uber para o aeroporto. Quando cheguei em São Paulo, recebi outra mensagem da organizadora: “Houve um mal-entendido. A fulana (a que chorou) achou que você era contra a legalização da prostituição”. Respondi: “Eu não quero mais saber nada sobre estas mulheres do seu círculo. Resolvam entre vocês”.
Na mesma noite, tive febre, Camila, uma das mulheres que saiu de Pelotas, vomitou ao chegar em casa, Thaíse, a pesquisadora e psicóloga que compôs a mesa e acolheu-me naquele evento de tamanha violência, conseguiu chorar alguns dias depois. Terezinha, mulher negra, advogada, de setenta anos, disse que sempre irá acompanhar mulheres negras nos seus eventos para que elas não se sintam sozinhas.
Perguntei-me, dias depois: “O que foi aquilo?” Uma frase da tese de Sueli Carneiro inundou-me: O corpo negro é o expurgo da branquitude. Naquela bolha de classe média branca sulista rolava uma dinâmica de duelos de egos, de chantagens, de competição sobre quem brilhava mais, de títulos, roupas, maquiagens e viagens… Mas, como o conflito entre a branquitude não pode ser escancarado para não romper o pacto e, como a agressividade entre elas fica num nível latente, superficial, é preciso achar um elemento externo sobre quem expurgar a violência gerada ao interno dessas relações. Eu fui colocada ali, conscientemente ou não, para elas poderem descarregar suas tensões, através de diagnósticos, choros, acusações. A única coisa que não fizeram e duvido que façam, é uma auto reflexão.
Soube depois, que ao saírem para outro local, depois do lançamento, as brancas discutiam sobre quem iria passar férias na minha casa na França. E depois somos nós aquelas que querem separar e dividir o movimento feminista. Deixo aqui uma frase de Achile Mbembe que ainda ressoa em mim todas as vezes que penso no primeiro lançamento do meu livro:
“Qualquer lugar onde apareça, o Negro liberta dinâmicas passionais e provoca exuberância irracional que tem abalado o próprio sistema racional”.
Fabiane Albuquerque é doutora em sociologia, autora do livro Cartas a um homem negro que amei, pela Editora Malê. Vencedora do Prêmio Internacional de Literatura “Scrittori Città di Siena”,Toscana, nos anos 2019 e 2020.
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