Quem conta um conto, aumenta um ponto: a trajetória da luxuosa senhora baiana Rita Gomes da Silva

Em meados do século XVIII, uma mulher negra escandalizou a sociedade baiana por sua riqueza, luxo e inteligência. Rita Gomes da Silva, de alcunha Rita Cebola, morou na conhecida Cidade da Bahia, Salvador. Mulher negra, possivelmente escravizada, casou-se duas vezes com homens importantes. Nesse meio tempo conquistou sua liberdade e, quando cabia, esbanjava luxo colonial. No que foi possível reconstruir de sua trajetória, Rita da Silva soube usar os recursos disponíveis a seu favor e de seus pares. Por isso o codinome de “cebola” fazia referência a sua astúcia e versatilidade.

Sua fama marcou histórias por séculos. A notável trajetória de Rita continuou sendo lembrada no século XXI, ora como uma mulher negra, vendedora de verduras, conhecida por sua habilidade de negociar espaços de sobrevivência no interior daquela sociedade, ora como um exemplo da importância de mulheres negras baianas ao longo da história.  

Ana Bittencourt, membro de família importante de senhores de engenho baianos no século XIX, lembrava-se que seu avô, Pedro Ribeiro, lhe contara sobre as quatro coisas mais extraordinárias que já havia visto, entre elas o luxo de Rita Cebola. Descrita como uma “mulata” criada com muito zelo por sua senhora, Rita teria sido alforriada por conta do casamento. Não havendo ainda documentos que comprovem os fatos mencionados, cabe constar o peso de uma desavença entre Rita e Pedro que justifique uma tendência pejorativa na descrição. 

Ao precisar da intermediação de Rita Gomes da Silva para renegociar uma dívida, o Major Pedro Ribeiro confiou nos boatos de que a caridade de Rita e sua autonomia nos negócios o ajudaria. Como não a conhecia pessoalmente, após entrar numa sala e ver uma mulata ricamente vestida, o que era comum entre as escravas de Rita, disse: “Rapariga, diga à senhora D. Ritta que me conceda a honra de falar-lhe”. Surpreendentemente a mulher que ele chegou a chamar de “rapariga” e ordenava um serviço subjugando a cor da “mulata”, era a própria Rita, o que demonstra o papel atribuído às mulheres negras no interior da sociedade colonial. No entanto, ela respondeu apenas: “Pode dizer o que quer, sou a pessoa a quem procura”. Contudo, o pedido foi negado por não ser vantajoso para ela e seu marido.

Pretas, mulatas, cabras ou pardas eram terminologias coloniais que encapsulavam as mulheres negras, algumas nascidas da violência senhorial. De todo modo, percebe-se como a cor era determinante para a condição social, e era definida pelos olhares e julgamentos de pessoas brancas. Na troca de correspondências entre as autoridades portuguesas e o Tribunal da Relação de Salvador – a Suprema Corte da Bahia –, a cor de Rita aparece como elemento relevante para sua defesa. Ao solicitar a averiguação de um esquema de corrupção no qual Rita foi implicada, informou-se que Rita era “mulata” e, em resposta, o governador da Bahia informou que ela era “parda”, colocando-a em outro patamar de qualidade social.

Não sendo possível determinar com precisão suas origens, os casamentos de Rita Gomes da Silva ganham importante dimensão em sua trajetória. A mobilidade social conquistada por Rita não é inédita; outros estudos demonstram processos de mobilidade social protagonizados por mulheres negras, escravizadas, livres e libertas. No entanto, a história de Rita reafirma a dinamicidade e as estratégias utilizadas pelas mulheres negras para sobreviver e ascender socialmente na colônia. 

Rita Gomes da Silva casou-se primeiro com o Capitão Leandro da Silva Braga, homem pardo, e dele não teve filhos, mas herdou propriedades, pessoas escravizadas e prestígio social (ou pelo menos bons contatos). Não identifiquei a data do casamento com o Leandro, mas sabe-se que Rita já era viúva em novembro de 1784. Nos anos seguintes, ela aparece administrando suas escravizadas sozinha.

Óbito de Feliciana, parda, filha de Maria, ambas escravas de Rita Gomes da Silva, em 14 de Março de 1792. Fonte: Arquivo da Cúria Metropolitana de Salvador (ACMS). Livro de Registro de Óbitos/Conceição da Praia, 1781-1804, f. 144.

Oito anos depois, em 1792, Rita da Silva, em circunstâncias misteriosas, casou-se com o Tenente Coronel Inocêncio José da Costa, homem branco natural de Lisboa. O matrimônio ocorreu no Oratório particular de Inocêncio no Campo do Barril, atrás da Igreja da Cidade, e teve o registro lançado no Livro dos Segredos na Secretaria Eclesiástica, provavelmente para não aumentar o fuxico que corria do envenenamento de Leandro ou por ser a terceira núpcia de Inocêncio. Durante sua vida, Inocêncio filiou-se a diversas irmandades de ordens terceiras – incluindo a do Carmo, em que Rita foi enterrada –, ocupou cargos administrativos na Santa Casa de Misericórdia de Salvador, foi funcionário do Santo Ofício, financiava empréstimos e era traficante de africanos escravizados. De acordo com Marieta Alves, Inocêncio da Costa era popularmente conhecido na vida social baiana, principalmente pelos cargos elevados que ocupou.

Fragmento do Testamento de Inocêncio José da Costa que menciona a trajetória de Rita Gomes da Silva. Fonte: Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB), Judiciário, 08/3465/02, Testamentos. Testamento de Inocêncio da Costa, Salvador. 1805, p. 9.

Obviamente, a esposa de um homem com significativo poder aquisitivo não passaria despercebida. Sendo ela uma mulher de cor, ainda que relações mistas não fossem incomuns à época, chamava mais atenção. Para além do caráter religioso, os matrimônios eram vistos como negócios, onde ou a pessoa buscava manter seu patrimônio e status social ou aumentá-lo. E foi o que Rita fez, duas vezes.

Neste sentido, mais importante do que conseguir ascender economicamente era construir uma estrutura para manter tal ascensão. Apesar das limitantes restrições legais por sua cor e gênero, Rita não se acomodou às posses de seus maridos. Na ausência deles ou conjuntamente, administrava a escravaria, negociava empréstimos e chegou a ser acusada de entregar gratificações à esposa do desembargador José Pedro de Azevedo de Souza da Câmara, no supracitado esquema de corrupção no Tribunal da Relação. A relativa autonomia exercida por Rita rompe com a ideia de mulheres negras como meras vítimas do sistema escravista. Segundo Angela Davis, a experiência do trabalho pesado permitiu que as mulheres negras aprimorassem suas habilidades em benefício próprio e de seus pares. No caso de Rita, permitiu assumir atributos para além do espaço doméstico.

Na esfera pública, Rita chamava a atenção de todos que por ela passavam ou que viviam na sua vizinhança. Ao sair de casa, ornamentava-se com extravagantes vestidos de seda, jóias, sapatos bordados com fios de ouro, e era acompanhada de mulheres ricamente vestidas a seu serviço, incluindo escravizadas negras e criadas brancas. Rita fazia jus à tradição de luxo das senhoras coloniais.

Conforme mostra Silvia H. Lara, numa sociedade exibicionista como a América portuguesa, as saídas cotidianas ou os festejos públicos eram espaços de demonstração do poder aquisitivo e político através da vestimenta e da escravaria. Tais distinções eram estabelecidas, inclusive, por medidas legais promulgadas desde o século XV. No século XVIII, essas leis definiam os tipos de tecidos, acessórios, armamentos e até o uso de sapatos para que visivelmente pudessem identificar a classe a que cada pessoa pertencia. 

Ao longo de sua vida, Rita também estava atenta às necessidades das pessoas próximas a ela. Fosse sua bondade por vaidade ou por mera gratidão, a mesma mulher que negava ajuda a certas pessoas, em seu leito de morte buscou assegurar moradia e sustento de outras mulheres negras como ela. Rita construiu uma rede de solidariedade entre mulheres negras através do compadrio e amizade, o que dimensiona as estratégias usadas para garantir alguma estabilidade além das relações consanguíneas. Esses vínculos variavam de acordo com a posição social ocupada por essas mulheres, mas de maneira geral buscavam artifícios para que seus bens pudessem ser administrados por pessoas de sua confiança no caso de falecimento ou que pudessem ser amparadas quando necessário. 

Nas mais diversas circunstâncias, a proximidade com mulheres de grande prestígio social não só assegurava proteção e alguma esmola post-mortem como permitia melhores condições de vida para a prole. O cuidado que Rita teve com as filhas da preta Suzana é um exemplo. Em vida, Rita cuidou das meninas e, ao falecer, deixou aos cuidados do marido, que em testamento, em nome da falecida, passou os cuidados a D. Úrsula das Virgens, outra beneficiada.

Ter sua distribuição de bens respeitada no testamento de Inocêncio da Costa demonstra não apenas o respeito aos desejos da finada, mas comprova que Rita administrava seus bens. Entre os beneficiários do testamento estava o casal Roza Maria da Conceição e Antônio Jesus Pereira de Andrade, que receberam um sobrado como herança. Foram criados por Rita e, mais tarde, a relação se estreitou através de vínculos de compadrio com Inocêncio. Outras mulheres foram listadas no testamento como beneficiárias de Rita, principalmente pelos cuidados com ela nos últimos dias, como Marcelina Angélica do Corpo de Deus.

Em vida, Rita mandou construir uma casa para Anna Maria Ribeiro, sua comadre, e ainda legou a quantia de vinte mil réis, e mais mil para cuidar de suas filhas. Maria da Cruz, outra beneficiada, recebeu sessenta mil réis. A natureza dessa herança não foi explicada, possivelmente uma retribuição do que recebeu em vida. Anna Rita possuía uma relação mais próxima com a senhora, recebeu o nome em homenagem a Rita da Silva, que um dia casará seus pais Luterio e Maria Luiza, esta recebeu cem mil réis de herança.

Evidentemente, isso não significa que a sociedade era menos patriarcal do que conhecemos, nem que todas as mulheres tinham essa liberdade. Nesse sentido, ainda que haja múltiplas explicações para a formação desses laços, é preciso constar que intencionalmente ou não, essas mulheres construíam vínculos de ajuda mútua e solidariedade. Inclusive ao restringir esse círculo afetivo para que as quantias fossem bem distribuídas, Rita pensava no bem-estar daquelas que receberiam parte de sua herança, por isso sua rede não se estendeu à escravizada Brazilia, que ficou de posse da afilhada de Inocêncio, Maria José.

A ideia central ao escrever esta trajetória consiste em visibilizar histórias de mulheres negras, no sentido de demonstrar formas de autonomia e estratégias de mobilidade social e sobrevivência durante o século XVIII. As particularidades na trajetória de Rita da Silva demonstram que as mulheres negras estavam em constante movimento e adaptação, ora extraordinária – por tratar-se de uma mulher de cor que esbanjava muito luxo–, ora comum numa sociedade que seguia o estilo barroco de ser e viver. Ressignificar a história de Rita da Silva para além do luxo pelo qual ficou marcada contribui para novas abordagens sobre a resistência de mulheres negras no Brasil escravista.

 

Assista ao vídeo da historiadora Alana Perônio no Acervo Cultne sobre este artigo:

 

Nossas Histórias na Sala de Aula

O conteúdo desse texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC)

 

Ensino Fundamental: EF07HI10 (7º ano: Analisar, com base em documentos históricos, diferentes interpretações sobre as dinâmicas das sociedades americanas no período colonial); EF08HI19 (8º ano: Formular questionamentos sobre o legado da escravidão nas Américas, com base na seleção e consulta de fontes de diferentes naturezas).

Ensino Médio: EM13CHS101 (Identificar, analisar e comparar diferentes fontes e narrativas expressas em diversas linguagens, com vistas à compreensão de ideias filosóficas e de processos e eventos históricos, geográficos, políticos, econômicos, sociais, ambientais e culturais); EM13CHS102 (Identificar, analisar e discutir as circunstâncias históricas, geográficas, políticas, econômicas, sociais, ambientais e culturais de matrizes conceituais (etnocentrismo, racismo, evolução, modernidade, cooperativismo/desenvolvimento etc.), avaliando criticamente seu significado histórico e comparando-as a narrativas que contemplem outros agentes e discursos).

Alanna Perônio

Graduada em História, Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS); Mestranda em História Social da África e Diáspora, UNICAMP;

Email: [email protected]; Instagram: @a.peronio_

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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