Um outro nome para aconchego

Dengo é um filme que trata de encontros, afetividades pretas e gueis, de amizade como modo de existência e resistência. Também aborda questões de como construímos imagens de nós mesmos, e também sobre as imagens projetadas sobre nós através das mídias e dos produtos culturais e artísticos. Como se perceber afetivamente e afirmativamente? Na montagem do referido média-metragem vemos a sensualidade, a liberdade e a beleza dos corpos anunciarem um mundo fundado na alegria, no amor e na solidariedade: “por favor, não fale sobre armas que você nunca vai usar. Todos contam sempre sobre todos vocês. Estou tão confuso”, está na letra de Moonlight (do rapper afro-americano Jay Z), que tem um trecho exibido na película.

Em Dengo “essa merda está para trás”: são os três jovens que se dizem, se afirmam, fabulam seus desejos, se unem e se fortalecem. A busca por identificações positivas. Dengo é um filme solar, colorido, experimental e delicado, nele a vida pulsa, brilha e ilumina esses dias pandêmicos e repletos de notícias de morte. Um respiro poético, um manifesto existencial, uma cachoeira de águas que purifica nossas emoções.

O filme criado e produzido por Elison Silva e Gustavo Nascimento (um projeto financiado com recursos da Lei Federal Aldir Blanc), tem leveza e deliciosas doses de humor. Dengo é axé. Tem corpo e ritmo. Está ali o afrofuturismo de Beyoncé se misturando com o pagode e samba do ART Popular, passando pela música Ain’t hot not de Luedji Luna. Tempo espiralado através de vozes pretas. Dengo nos mostra a força dos aquilombamentos afetivos. A mão que segura a câmera é preta e mira o poético e o invisível que povoam nossos cotidianos. Ndengo ou dengo no dicionário da língua portuguesa vai ser associado, simplesmente, à “manha”, ligado ao contexto de imaturidade ou fraqueza: “que dengoso”. Mas, quando olhamos para o sentido ancestral, temos um significado mais profundo nas línguas banto, no quicongo. Podemos entender dengo como “aconchego no outro em meio ao desconforto cotidiano”. Ampliando, dengo pode encaixar-se para nós negros no lugar da palavra amor. Quando “amor” não dá conta das nossas relações e narrativas. Por isso Dengo reconcilia nossa forma de viver os afetos para além dos modelos coloniais. Redescobrir o dengo é recriar formas de viver do lado de cá do atlântico. Encontrar aconchego para os processos de cura.

Aconchego poderia então ser outro possível nome para o filme. Ele nos leva para dentro de casa para viver uma relação de cuidado e confiança. Aquele lugar/pessoa que te ajuda a respirar antes de ir para a batalha cotidiana. No filme parece que um rolê num bar com os amigos poderia ser mais interessante e provocador do que um jantar romântico (esse modelo cisbranco e heteronormativo de amor romântico burguês e patriarcal). Mas por que então essa imagem idealizada os provocaria tanto a ponto de ser tema de conversas? Ao mesmo tempo eles falam da busca pelo afeto público, sobre ser beijado na frente de todas as pessoas e não no banheiro fechado e escondido. Aqui dimensões como racismo e homofobia permeiam a narrativa, ainda que pelas margens. As águas que caem agora da cachoeira também podem ser discretas lágrimas de dor e grito sufocado.

Sim, a tônica do filme não recai na tristeza, mas pelo contrário, parece focar nas subversões e pequenas epifanias. Mas onde há sutileza também coexiste o não dito, o violento e o violado, nossas feridas e desilusões. Trazer à superfície o que habita nas entrelinhas convoca um olhar mais atento e ouvidos mais dispostos. Dengo fica nessa tênue linha entre anúncio e denúncia. Assim a cachoeira (real e simbólica enquanto água que vivifica e limpa as dores) se presentifica na ducha da laje, poderosa heterotopia. Aliás, as imagens da ducha são significativas: às vezes está fechada, aparece focada sozinha e sem ninguém, logo depois estará habitada. Molhar e regar os “foras” e os “dentros” com os dengos. Refrescar a existência.

Outra imagem recorrente: a caixa térmica sendo sempre preparada para a ida à cachoeira. Podemos afirmar que eles não foram até lá? Mas é no presente vivido entre recordações, reflexões e desejos que jorram as mais genuínas sensações e percepções. Então o pretexto (um passeio na cachoeira) se torna contexto (uma caminhada pelos afetos) e o argumento principal já está lá: escutar suas aventuras e histórias de vida entre “papos de Pop star pretas e minha última transa”.

Dengo transita entre o documentário, o depoimento e o ficcional: a câmera que enquadra é a mesma que abre a lente para as porosidades dos corpos, que capta os olhares sonhadores e as falas sinceras, que se deixa invadir pelas paisagens desertas em volta da casa com suas sonoridades das máquinas das fábricas do Vale do Aço, mais especificamente em Coronel Fabriciano, cidade onde se passa o filme. Entre o cotidiano e o extraordinário, na tela respingam imaginários amorosos. A gente resgata a gente mesmo.

Ao término do filme, fica a vontade de se sentar à mesa de um bar para conversar muito e se divertir com Belchior Ferreira, Gustavo Nascimento, Elison Silva e Nayara Botaro. Juntes bailar novas formas de habitar o mundo. Em tempos de isolamento físico e confinamento domiciliar, a saudade e a falta de um encontro num bar ao ar livre, só aumentam nossa fome e sede por misturas, partilhas, babados e fechações. Promessa de felicidade. Então o jeito é rever Dengo e experimentar novamente o aconchego que só ele é capaz de nos proporcionar.

Clóvis Domingos (BH/MG) é Pós-Doutorando em Artes Cênicas (UFOP), pesquisador cênico e crítico teatral no site Horizonte da cena.

Winny Rocha (Vitória/ES) é Mestre em Artes Cênicas (UFOP), arte-educador e militante do Círculo Palmarino (Organização Nacional do Movimento Negro)

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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