“Fome, uma autobiografia do (meu) corpo”, livro de Roxane Gay

“Fome” não é um livro para gostar ou desgostar, é obra para conhecer uma realidade acachapante e torturante para várias mulheres, mas ignorada por muitas de nós . Roxane Gay, uma mulher negra caribenha, de 1,90 e que já chegou a ter mais de 250 quilos nos conta de maneira brutal as brutalidades sofridas por seu corpo, toda a violência de, quando menina, ter sido estuprada por um grupo de garotos, liderado por seu namorado. Ela nos entrega a autobiografia de seu corpo definido por todas as dores, recalques, cicatrizes e dezenas de quilos subsequentes, buscados e acolhidos como uma proteção do próprio corpo às violências do mundo.

Por Cidinha da Silva, Do Medium

Capa do Livro "FOME" de Roxane Gay- livro de capa rosa claro com escritas pretas e brancas
(Foto: Reprodução/ Globo Livros)

Um corpo silenciado cujo grito acontecia pela ingestão de comida: “No antes da minha vida, eu era bem jovem e protegida. Não sabia nada sobre nada. Não sabia que podia sofrer, nem conhecia a extensão do que o sofrimento podia ser. Eu não sabia que podia dar voz ao meu sofrimento quando ele ocorresse. Não sabia que havia jeitos melhores de lidar com meu sofrimento. De todas as coisas, o que eu mais gostaria de ter sabido é que podia falar com meus pais e obter ajuda, e recorrer a outra coisa em vez de comida. Eu gostaria de ter sabido que minha violação não foi culpa minha.

O que eu de fato conhecia era a comida, então eu comia porque compreendia que poderia ocupar mais espaço. Poderia me tornar mais sólida, forte, mais segura. Eu entendia, pelo jeito que notava as pessoas encarando gente gorda, pelo jeito que eu mesma olhava gente gorda, que muito peso era algo indesejável. Se eu fosse indesejável, eu poderia evitar sentir mais dor. Pelo menos, eu esperava poder evitar sentir mais dor, porque no ‘depois’, aprendi muito sobre dor (…) Esse é o corpo que produzi. Sou corpulenta — rolos de carne marrom, braços e coxas e barriga. A gordura acabou não tendo para onde ir, então criou seus próprios caminhos pelo meu corpo.”

Não tive um minuto de alívio na leitura, a narrativa de Roxane Gay é algo de tirar o fôlego, de interromper a respiração e se a gente não segura bem o cabeção, pode passar por um sufocamento inesperado. Trata-se de um texto visceral que revira as entranhas da gente pela narrativa de tanta violência sofrida. Contudo, não há qualquer traço de vitimização na narradora, ela é a senhora da história e escolhe o que contar, o que evidenciar e o que manter em segredo. É como se nos dissesse: “Vocês inventaram a gordura super-mórbida, mas não olham para a morbidez da curiosidade de vocês sobre a gordura alheia, sobre o detalhamento das violências sexuais sofridas por outras pessoas. Eu sei como vocês pensam e não farei o jogo de vocês.”

A leitora sabe que a menina que sofreu o estupro coletivo é negra, mas é apenas uma inferência pensar que o namorado e sua turma eram brancos, parece que sim, mas não percebi um momento em que isso fosse afirmado com todas as letras. E se tiver sido realmente assim, há um elemento racial crucial na forma cruel e sádica pela qual o corpo daquela menina negra é virado do avesso por adolescentes da sua idade, depois de um passeio de bicicleta que desemboca numa casa abandonada no meio da floresta. Mas o que a narradora nos permite entender no curso da narrativa é que isso não importa; não importa quem cometeu a violência, importa que ela foi cometida e destruiu a subjetividade de uma menina, isso é o que importa. Se você, leitora, quiser fazer alguma leitura sociológica que passe pelo desvalor de uma menina negra mesmo sendo filha de uma família muito bem situada economicamente e absolutamente brilhante na escola, faça, problema seu. A narradora só está interessada em falar da dor insuportável a que o corpo daquela menina foi submetido ao longo de décadas e a maneira como ela encontrou na comida uma possibilidade senão de defesa, pelo menos de resguardo.

“Fome”, de Roxane Gay, é um livro duríssimo, tal como “Preciosa”, de Sapphire. Duas autoras negras, às quais precisamos ler e escutar para aprendermos a acolher dores profundas e dilacerantes, ao passo em que abrimos mão de nossos criticismos superficiais e insuficientes para compreender temas distantes de nossa realidade.

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