O Rio de Janeiro é considerado um dos principais destinos para os angolanos que viajam pelo mundo. O turismo tem sido um dos grandes motivos, tendo em conta que aquela é nada mais, nada menos que a maior rota de turismo internacional do Brasil, de toda América Latina e até mesmo de todo Hemisfério Sul. As compras também aparecem como uma das principais razões para que esta seja uma cidade conhecida dos angolanos. São inúmeros os cidadãos que se deslocam de Luanda para visitar os grandes centros comerciais do Rio, e a maioria acaba por sair com produtos a mais para revender em solo nacional.
Entretanto, são igualmente muitos os angolanos que decidiram levar a sua vida naquela que é a segunda maior cidade do Brasil. Mesmo entranhados no seio de uma população que conta com quase 20 milhões de habitantes, os cidadãos oriundos de Angola que residem na terra dos cariocas distinguem-se, quer pela forma como se expressam – apesar das fortes influências do brasileirismo, o sotaque ainda desvenda o estrangeirismo – quer pela forma como se mantêm unidos e conservam alguns hábitos e costumes próprios da terra mãe.
A Vila do João, cujo acesso se dá pela grande Avenida Brasil, é conhecida como a zona em que abundam angolanos residentes no Rio de Janeiro.
Trata-se de um bairro comercial por excelência, com um sem número de pequenas lojas, bares e barracas de comes e bebes. Apesar de estar bem próximo da urbanidade e dispor de serviços como energia eléctrica, água canalizada e fácil acesso à rede pública de transportes, a Vila do João é considerada uma favela, muito por culpa do baixo nível social de quem vive lá e também pela forte presença de traficantes de droga.
Apesar de serem uma minoria no meio de tantos brasileiros, os angolanos convivem de forma salutar com os nativos na Vila do João, como contam alguns intercutores abordados pela nossa reportagem. Carlos da Silva, de 38 anos de idade e residente há mais de três anos no Rio, refere que não tem havido problemas na relação com os cariocas.
“Pelo contrário, eles até gostam de fazer amizade com os angolanos, ouvir histórias sobre o nosso país e sobre o continente africano”.
Ilídio José, de 37 anos, residente no Rio de Janeiro há mais de dez anos, disse ter testemunhado já rixas entre angolanos e brasileiros, mas nunca por motivos relacionados com xenofobia ou racismo.
“Desde que você não se meta na vida alheia, tudo corre na boa. Sobretudo aqui na Vila do João, apesar de muitos considerarem que é um bairro perigoso, não tem havido grandes incidentes em que tem um angolano envolvido. É mais entre eles”.
Ainda assim, e para evitar que entrem em brigas com os cariocas, os angolanos preferem cultivar a amizade entre si, fixando-se num local específico: o bar de um conterrâneo onde, para além de poderem saborear alguns quitutes da terra o funje com kizaka é um dos pratos mais concorridos dançam ao ritmo das músicas angolanas que lhes vão chegando. A kizomba, o semba e o kuduro são também formas de matar as saudades que têm da terra que os viu nascer.
Receita de Funje com Kizaka
Corre o boato de que em Angola se come Kizaka e Funge. Consta também que já comi disso algures.
A receita é um segredo bem guardado. Sempre que se pergunta como se faz, as mulheres riem-se. Não sei se é por ser branco e querer saber como se faz a comida angolana porque gostei do sabor, se é por ser homem e estar proibido pela tradição de me aproximar da cozinha ou se é por ser segredo de Estado, que tem de pagar imposto para ser exportado. Um pouco à semelhança da arte, que tem de levar um selo de autorização de saída.
O certo é que o mais próximo que estive de uma receita foi um sorriso envergonhado a acompanhar um «é fácil…». Mas daí não passou. Talvez seja daquelas coisas que nasce com as pessoas, que é óbvio como se faz, mas não se consegue explicar. Passamos pelo mesmo problema quando tentamos explicar a sensação de andar de mota.
Como as indicações que tinha eram muito vagas, resolvi inventar. Para a Kizaka, os ingredientes básicos são óleo de palma, folhas de mandioca, cebola, água e coisas indeterminadas. Talvez esteja redondamente enganado, mas parti daqui.
Óleo de palma no tacho. Talvez muito, talvez pouco.
Comecei a aquecer o óleo de palma. Como a cozinha angolana também se miscigenou com a portuguesa, as hipóteses de começar com um refogado são grandes.
Ainda havia umas granadas de gás lacrimogéneo no cesto. A Lucinda tem de começar a vender cebolas mais mansas.
Aspecto inofensivo.
Não há faca molhada, óculos ou outros truques que valham. A história que estas cebolas contam é sempre de ir às lágrimas.
Cebola picada e pronta a saltar para o tacho
O óleo de palma é mais discreto que o azeite quanto à temperatura a que se encontra, pelo que ia tendo uma surpresa quando lá pus a cebola. Nota mental: não demorar tanto a picar a cebola.
Refogado com óleo de palma, quem diria?
Como não encontrei folhas de mandioca à venda, nem sei bem como as hei-de escolher, optei por uma solução de recurso: uma lata de espinafres.
Pode não parecer, mas são folhas de mandioca
Não demoraram muito a ir para o tacho.
Mais um pouco de água e deixa-se apurar
Entretanto, deparei-me com um problema. O que seria o ingrediente secreto? O que seriam as coisas indeterminadas?
Abri o armário e procurei algo com um rótulo sugestivo. Encontrei várias latas de atum. Seria isto um bom candidato a coisa indeterminada?
Hmmm… acho que já estou a aldrabar demais…
Escorri o óleo, desfiz os pedaços maiores e deparei-me com uma tigela cheia de coisas.
Nem sei que diga…
Não pedi licença e juntei o atum, perdão, a coisa indeterminada às folhas de mandioca, à cebola e ao óleo de palma.
Valente mixórdia. Ainda me arrisco a passar fome
Uns minutos de tacho semi-destapado, só para evaporar alguma água, e o panorama era parecido com as kizakas que tenho visto.
Kizaka aldrabada
Como a kizaka não se come sem acompanhamento, e estava numa de cozinha angolana, deitei mãos à obra para tentar fazer um funge.
Os ingredientes já conheço, mas não sei as proporções. Arrisco outra vez.
Água a ferver
O funge é farinha de mandioca, milho, batata-doce ou outra, cozida. Nada mais. Tem muitas vitaminas mas, acima de tudo, enche a barriga.
Fubá de bombo
Serão estas as proporções? Não eram, tive de acertar a farinha e a água algumas vezes, até conseguir algo parecido com o funge que já comi.
Depois de batido, consegui um funge com borbulhas
O funge tem de ser muito bem batido ou então fica com grumos, a que se chamam borbulhas. O processo habitual é segurar a panela entre os pés e, sentados, tentar furar o fundo usando um pau comprido.
Como não tinha pau-do-funge, nem me apetecia sentar no chão, acabei por usar uma colher de pau e suei as estopinhas para conseguir um funge demasiado líquido e com borbulhas… Estava destinado a comer do meu veneno.
Depois de juntar a kizaka ao funge, até nem parecia uma imitação barata. Provei e recomendo!
Et voilá!
Fonte: Aerograma
Passadas no Kizomba
Semba
Kuduro
Fonte: O Pais