Funk ostentação é Hip Hop, mas o Hip Hop não é só isso

Branded Head, Hank Willis Thomas, 2003.
O funk ostentação é hip-hop. Não estou dizendo que o hip-hop resume-se à ostentação. Mas que o funk ostentação tem a ver com a tendência do rap que glamoriza o estilo PIMP (Cafetão/Proxeneta).

O PIMP é o estilo gangsta na versão século XXI, que renovou e reatualizou a linhagem iniciada nos fins dos anos 1980 por Ice-T, ampliada por 2 Live Crew, aprofundada por N.W.A., aprimorada por Dr. Dre e Snoop Dog, tomando um caminho sem volta com 2Pac e Notorious Big. O estilo PIMP foi muito bem defendido por 50Cent em seu disco de estréia de 2003, Get Rich or Die Tryin’ (Fique rio ou morra tentando), e ele conseguiu, é o típico self made man – 50Cent na Forbes.
Por Allysson Fernandes Garcia

Em 2013 50Cent lançou o clipe de We Up, com Kendrick Lamar – a nova revelação do rap estadunidense-, reafirmando a tendência, ostentando mulheres, jóias, carros, marcas. Interessante que a semelhança do sertanejo arrocha com o estilo PIMP  não é mera coincidência, é pura ostentação. E a ostentação, as excentricidades não se limitam aos artistas dos gêneros “malditos”, melhor dizer amaldiçoados, como não música.

Então, a excentricidade e a ostentação estão presentes no rock, em outros gêneros musicais e outras artes, típico da performance da celebridade, por exemplo: Nick Mason e suas Ferraris; os carros de Nikki Sixx; Frank Sinatra e a máfia; a oração de Janis Joplin por uma Mercedes Benz. Seria uma lista infindável, então, voltemos a We Up, nela os rappers rimam a vida complicada de milionário, afirmam como deram duro para conquistar riqueza, e como serão duros para manter as conquistas.

Criticam os aproveitadores e se gabam de não serem negros como aqueles que usam falsificações. Saíram do gueto, mas hoje têm estilo e poder para adquirir “good pussy for dinner/ bomb kush for breakfast”:

No documentário sobre o funk ostentação podemos conferir as afinidades temáticas e performáticas entre os dois estilos. O que faz o funk ostentação ser hip-hop são elementos básicos: música para a dança, uso da antifonia (chamado e resposta), bases musicais produzidas através de samplers e programações, rimas geralmente em primeira pessoa, caracterizadas por improviso e bazófia, artistas, em geral,  negros e de classe baixa, enfim, marginalizados, produzindo crônicas sobre o cotidiano vivido por eles – justamente aqueles que têm maior probabilidade de morrer antes da velhice, não é atoa que o lema é “viver pouco como um rei e não velho como um zé”:

O rap nacional, que seria o hip-hop real, não deixa por menos, de Cabal à MV Bill, passando pelo time da Bagua Records. Os manos Claudinho e Lethal me disseram, porém, que o verdadeiro PIMP brasileiro é o Mr. Catra.É possível retroceder um pouco para pensarmos a questão das relações ostentatórias dos artistas negros com as grandes marcas. No livro Sem Logo: as tiranias das marcas em um planeta vendidoNaomi Klein argumenta que nos anos 1980 os jovens negros dos bairros pobres dos EUA serviram como fonte de “significado” e identidade para várias marcas. Abaixo reproduzo um trecho sobre o caso do grupo Run DMC e sua homenagem “espontânea” à marca Adidas.

O mais recente capítulo na corrida do ouro do mainstream americano para a pobreza começou em 1986, quando os rappers do Run-DMC deram uma nova vida aos produtos Adidas com seu sucesso My Adidas, uma homenagem a sua marca favorita. Anteriormente, o trio de rap loucamente popular tinha hordas de fãs copiando seu estilo de assinatura e medalhões de ouro, abrigos Adidas preto e branco e tênis Adidas cavados, sem cadarços. “Calçamos esses tênis toda a nossa vida”, disse Darryl McDaniels (também conhecido como DMC) de seus calçados Adidas na época.

Foi ótimo por algum tempo, mas depois ocorreu a Russell Simmons, presidente do selo Def Jam Records do Run-DMC, que os rapazes deviam ter sido pagos pela promoção que estavam fazendo para a Adidas. Ele abordou a empresa de calçados alemã sobre a possibilidade de destinar algum dinheiro para a turnê Together de 1987. Os executivos da Adidas foram céticos a respeito de se associar com a música rap, que na época era rejeitada como uma moda passageira ou difamada como uma incitação à baderna. Para ajudá-los a mudar de ideia, Simmons levou dois mandachuvas da Adidas a um show do Run DMC. Christopher Vaughn descreve o evento na Black Enterprise: “No momento crucial, enquanto o grupo de rap estava apresentando a canção [My Adidas], um dos membros do grupo gritou, ‘OK, todo mundo balançando seu Adidas!’ — e três mil pares de tênis foram atirados para o ar. Os executivos da Adidas sacaram seu talão de cheques com uma rapidez recorde.” Durante a feira anual de calçados esportivos em Atlanta naquele ano, a Adidas revelou sua nova linha de calçados Run-DMC: a Super Star e a Ultra Star – “desenhados para ser usados sem cadarços”.

Será que veremos algum acordo entre as marcas e os funkeiros que as ostentam?

Será que nos deparamos com a repetição da tragédia, agora como farsa?

Enfim, como canta MC Dede “quem pode, pode/quem não pode se sacode”. E essa molecada está fazendo muita gente sacudir, sobretudo, quando os fãs que vivem em áreas sem equipamentos públicos de lazer – onde bailes são proibidos, muitas vezes com toque de recolher, encurralados entre a violência do crime organizado de farda ou à paisano, áreas nem um pouco parecidas com as paisagens da publicidade que alimenta a ostentação – saem para rolezinhos nos shoppings.

Se ser cidadão é ser consumidor, essa galera já entendeu. E é por isso que as marcas são para eles – como o são inclusive para quem não ostenta flagrantemente – fontes de “significado” e identidade. O problema são os atravessadores…Decadência, degeneração? Que nada. A exploração, as discriminações, as violências, o racismo e as desigualdades seguem firmes e fortes. Nestor Garcia Canclini apontou algumas questões que valem repetir e refletir:

Enquanto as ações de massa não desenvolverem intervenções adequadas à extensão e eficácia da mídia, prevalecerão as dissidências atomizadas, os comportamentos grupais erráticos, conectados mais pelo imaginário do consumo e menos pelos desejos comunitários. (1999, p. 287)

Ou abraçamos o ideal utópico, como afirma o crítico argentino, na medida em que haja o desejo de que a “emancipação e a renovação do real continuem fazendo parte da vida social” ou seguiremosshaking our branding make, pois a Copa vem aí e dá-lhe ostentação. É possível acreditar que o apelo publicitário das marcas será sobrepujado pelo “say no to racism”?

A nova diva do hip-hop nacional, Karol Konka, já está faturando, e não há nada demais, o perigo está na afirmação do esporte e da música como um fim e não como meio para a emancipação da juventude negra e pobre.Como disse acima, o hip-hop não pode ser resumido à ostentação, e a atuação dos artistas vai muito além da imagem que se consome.

Ao mesmo tempo, dentro do próprio hip-hop vem a auto-crítica e a chamada à responsabilidade pela defesa de um dos elementos chaves dessa cultura, defendidos por Afrika Bambaataa e muitos outros, o conhecimento e a consciência.

Assim, quando GOG se nega a participar de evento da Fifa com a Rede Globo; quando sarais de poesia, a literatura marginal e o cine periferia desafiam as forças contrárias; ou quando Dexter questiona a fita dominada, temos ações emancipatórias, pois críticas do status quo, e que contribuem para a renovação do real.

O importante é que a liberdade para ser o que quiser ser, para consumir o que deseja sejam garantidas, assim como, o conhecimento sobre as origens das matérias primas -de onde vêm as matérias primas, as formas de produçãodescarte dos produtos entre outras questões, é preciso saber das consequências em abraçar o american way of life.

Além do mais nós somos péssimos consumidores, não para as empresas é claro, pagamos caro, sem muita reclamação, em nome do status. Por outro lado, não prestamos atenção na atuação social das empresas, se elas apoiam programas sociais, ambientais, culturais, o que já ajudaria a amenizar o fosso, sobretudo se estes projetos estivessem onde o Estado não chegou, nas áreas de onde saem a galera dos rolezinhos.

Em Diadema, por exemplo, a Casa do Hip-Hop onde foram realizadas várias atividades de formação e recreação por mais de dez anos, atualmente está às traças. O bom é que King Nino Brown, um dos criadores, está atuando na nova Casa do Hip-Hop em São Bernardo do Campo.

Em Goiânia e Goiás também há também diversos coletivos e indivíduos fazendo a diferença, no break: Mega Break e Electro Rock; no rap a VMG e outras bancas; Dj Fox na produção de vídeo clipes; CRJ na formação;RapGyn e Marginal Latino na informação.Outro questão a ser refletida é a falta de conhecimento sobre as leis de incentivo cultural, muitos hip-hoppers criticam, com a afirmação de que é um dinheiro dos políticos, e de que são independentes, mas não entendem que é um financiamento à base dos impostos pagos por pessoas físicas e jurídicas, aprender a fazer projetos para garantir o financiamento dos trabalhos autorais é de suma importância para garantir a emancipação.

A história do Dexter é exemplar, pois para bancar as gravações de um disco buscou no 157 a saída, qual dinheiro será mais sujo, o das leis de incentivo ou o produto do crime? Porque o hip-hop crítico, politicamente posicionado, ou os projetos para o breakdance, para o audiovisual, para os livros não são artes que produzem retornos econômicos que os possibilitem sobreviver, e enquanto as empresas não invistam, como mero merchandising, as leis de incentivo são uma possibilidade, e mais, um direito irrefutável.Não é fácil, porém, fugir às tentações e às dominações simbólicas e de fato. São estruturas poderosas e cambiantes disseminadas em micro-poderes. Desconstruir e re-construir o imaginário e as práticas deletérias é tarefa árdua e implica um esforço individual, coletivo e institucional imenso. Ainda há tempo.

O importante é ter disposição para assumir o compromisso, junto com as contradições e fragilidades de nossa condição atual. O primeiro passo, creio eu, é entender que as culturas de juventude são fruto de condicionamentos históricos, lutas por representação e reconhecimento e não barbarismo atávicos ou degradação do humano. A partir deste entendimento é possível construir diálogos, pontes, redes no lugar dos muros, medos e violências.

Como professor e defensor da escola pública, me parece urgente a nós que estamos nas instituições educacionais construir canais de debate e agregar forças para o enfrentamento das demandas da juventude e das comunidades locais.

É preciso canalizar esforços para que as escolas e universidades tornem-se espaços para o confronto de ideias franco e democrático, onde se possa aprender e reaprender com o outro. Mas será que estamos prontos para ouvir, a ponderar, a confiar em nossa capacidade e na capacidade das criança, jovens e seus familiares em construir projetos que contribuíam, verdadeiramente para o desenvolvimento pleno da criatividade?

Criatividade esta que possa colocar em prática e renovar as relações com nós mesmos, com os outros e com o mundo que nos cerca através das artes, as ciências, os usos do corpo, as relações com a diversidade, a democracia e a liberdade? Pode ser que sim, desde que estes espaços dedicados ao saber e à sua re-construção contínua não sejam vistos como apanágios salvacionistas, mas sim como instrumentos para a emancipação e renovação do real em detrimento dos enquadramentos autoritários e repressivos e das vaidades egoístas.

O hip-hop surgiu ao longo dos anos 1970 como resposta ao urbícidio, que segundo Marshall Berman, atormentou os moradores do South Bronx – um gueto de classe trabalhadora negra e imigrante. Parecia não haver saída diante de tamanha degradação gerada pelos deslocamentos forçados pela destruição de áreas residências para a construção da Cross Bronx Expressway.

As forças da intervenção urbana, baseada na especulação imobiliária ajudaram a desintegrar laços comunitários e de vizinhança. A violência aumentou, com as taxas de homicídio subindo ano após ano. A população foi assolada por uma epidemia de droga que se alastrou por entre as ruas desoladas pelos incêndios que queimaram as áreas que não haviam sido destruídas para o empreendimento.

Neste momento as subestações de Corpo de Bombeiro eram fechadas com o argumento de que a população estava diminuindo. Surgiram inúmeras gangues, inclusive para a proteção de quarteirões contra as ações de outras. E tudo isso quando as fábricas fechavam suas portas e migravam para outras regiões ou países, atrás de incentivos fiscais e mão de obra barata, deixando para trás inúmeros desempregados.

Foi naquele contexto de angústia e miséria que adolescentes em sua maioria negros e latinos criaram através da arte e da diversão novos laços comunitários, novas famílias que deram sentidos às suas vidas, fornecendo alento, abrigo, alegria, estilo e modo de vida, muitos passaram a viver da arte da dança, do grafite, como Dj ou rapper. Mas também serviu como instrumento para seguir adiante e abraçar outras possibilidades para além das contingências do urbícidio.

Construíram um poderoso meio expressivo que continuou reverberando para outros territórios e dando sentido para a vida de muitos jovens, ao redor do mundo, que encontraram no hip-hop uma saída. Aí está força do hip-hop. Porém, como qualquer produto humano carrega contradições e fragilidades. Sem, no entanto, “passar pano”, indicam que é preciso enfrentá-las, pois, “se tu luta, tu conquistas”:

Para terminar, creio que o trabalho de Hank Willis Thomas -da imagem que abre a postagem-, artista estadunidense que criou em 2007 a exposição Unbranded (Sem marca), ajuda-nos a manter a reflexão sobre o real e o possível na sociedade de consumo contemporanea. As obras consistem em publicidades que tiveram os logos e slogans retirados para que os corpos negros falassem por si. Confira AQUI.

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Referências:
BERMAN, Marshall. À beira do fim: Nova Iorque na virada do milênio. In: SERPA, E. C. …et al.Narrativas da modernidade: história, memória e literatura. Uberlândia: EdUFU, 2011, pp. 69-92.
CANCLINI, N. G. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. RJ: UFRJ, 1999.

Fonte: Miscelânea cerratenses
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