A “genialidade” é branca?

Qual a qualificação de uma jornalista desinformada levada a um debate sobre cotas na TVE da Bahia? Ter a pele clara?

Foto: Christian Parente

 

Por Djamila Ribeiro Do Carta Capital

Em 22 de novembro, a TVE Bahia promoveu um “debate” sobre cotas raciais, em programa conduzido pelo jornalista Jhonatã Gabriel. Entre os convidados, figuravam a promotora de Justiça Livia Vaz, a socióloga Marcilene Garcia, a jornalista Priscila Chammas e o professor de Direito Osvaldo Bastos.

Coloquei o termo debate entre aspas porque a produção do programa, ao escalar alguém tão despreparada como Chammas, não queria debater coisa alguma, e sim promover uma polêmica.

Logo de cara, o apresentador faz uma pergunta já respondida pelo STF, ao julgar a constitucionalidade das cotas raciais em 2012. Ele indagou a Vaz se essas políticas afirmativas não poderiam aumentar a discriminação, em uma sociedade na qual a população negra, majoritária, está apartada dos espaços de poder.

A promotora lembrou que o Brasil foi o último país das Américas a abolir a escravidão, além de se valer de aparatos legislativos para discriminar a população negra.

Uma lei complementar à primeira Constituição brasileira, de 1824, proibia expressamente os negros de frequentar a escola. É preciso reconhecer que o Estado promoveu a desigualdade racial e, portanto, tem obrigação de reparar a injustiça histórica.

Com base em achismos, Chammas discordou da promotora. A jornalista limitou-se a repetir chavões, ao estilo “somos todos seres humanos” ou “quem se divide por raça é animal”. Para rebater esse senso comum, Livia Vaz explicou não existir raça em termos biológicos, mas do ponto de vista sociológico. No Brasil, valem-se das raças para oprimir, haja vista a política oficial do branqueamento e a realidade da população negra brasileira.

Rovena Rosa/Agência Brasil

Talvez inspirada nas caixas de comentários de sites, Chammas afirma não ser possível dizer quem é negro no Brasil. Por fim, conclui que as cotas estimulam um tribunal racial. Pacientemente, Vaz e a socióloga Garcia explicaram que existe um tribunal racial no Brasil, aquele que permite o assassinato de um jovem negro a cada 23 minutos, aquele que não se importa com a morte de corpos negros historicamente.

Na política de cotas, seria preciso ter uma banca de verificação para que a efetividade da ação afirmativa fosse legitimada. Fraudar o processo de seleção nas universidades seria trapacear na reparação ao povo negro.

Cheia de si, a jornalista prosseguiu com seus achismos. Chegou a dizer o que prevê o artigo quinto da Constituição para Vaz. Pensem no despropósito: uma mulher branca, sem base jurídica alguma, dizer para uma mulher negra, promotora de Justiça, o que está escrito no texto constitucional.

Percebem o racismo? Ela pensa que pode falar de algo que não entende, para alguém que estuda e exerce o Direito. Chammas diria a um astrônomo que o Sol não é uma estrela, porque ela acha que não é?

A jornalista ainda nos rendeu mais pérolas. Disse que Vaz não tinha traços de negros, como se a diversidade fosse monopólio da branquitude. Chammas precisa saber que para o Brasil veio um grande número de negros da etnia bantu, que possuem características físicas como narizes largos, mas que existem outras etnias negras com traços diversos.

Logo, afirmar que existem “traços de negros” como se todos fossem iguais e homogêneos é uma tática colonizadora, consequentemente racista.

A irresponsabilidade da TVE Bahia em promover falsa polêmica e propagar a desinformação para o público é gritante. Onde está a ética? Como puderam permitir que duas profissionais fossem desrespeitadas dessa forma por uma convidada que nem sequer embasava as suas declarações? Que tipo de programa autoriza a desonestidade intelectual dessa forma, com a falsa percepção de que expunha opiniões diferentes?

Ora, opinião é achar que sorvete de morango é mais gostoso do que de chocolate. Não existiu um debate de ideias. Chammas só legitimou o status quo. Que direito ao contraditório é esse, em um País onde a maioria dos jornalistas e apresentadores é de brancos?

Livia Vaz é promotora, Marcilene Garcia é doutora em Sociologia. O que qualificou Chammas para o debate, além do fato de ser branca? Ela nem sequer se preparou para o evento, em total desrespeito às suas interlocutoras, pois simplesmente acha que não existe racismo no Brasil.

O debate sobre cotas raciais exige estudo técnico-jurídico e sociológico, coisa que Chammas não tem. Mesmo assim, ela se achou no direito de rebater quem se dedica ao estudo do tema, com base em inferências do próprio umbigo. Até quando canais de tevê tratarão os negros dessa forma, colocando-os em situações vexatórias?

Não havia a mínima condição de aquela jornalista estar ali. Nós, negros, mesmo com currículo excelente, somos sempre questionados por nossa capacidade. Já para os brancos, basta a branquitute para participar de qualquer debate.

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