Obrigado a contrariar a vocação boêmia por causa da pandemia, o bairro carioca da Lapa ganhou um ar desolado nesse tempo de ruas desertas. Durante o dia ficam mais visíveis as mazelas que a noite esconde, como os incontáveis moradores de rua e os muitos bares que fecharam as portas definitivamente. Nesse cenário árido, porém, um gigante da arte brasileira emergiu dias atrás para trazer algum alento.
Com seus 10 metros de altura, Pixinguinha pode ser visto de longe. Toca o saxofone, metido em um elegante terno azul. Abaixo dele, seu grupo, os Oito Batutas, se entrega à música, animadamente. Ao lado, um outro retrato do músico e compositor genial.
Na quinta-feira, 25, foi concluído o enorme desenho na parede do Museu da Imagem e do Som, bem próximo aos Arcos da Lapa. Naquelas redondezas, o autor de Carinhoso e outros clássicos da música brasileira se apresentou em teatros e restaurantes, no início do século passado.
A imensa figura de Pixinguinha olha fixamente para o prédio do outro lado da rua, onde fica a Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Parece mesmo estar em casa.
O criador do grafite é o artista Cazé, que, em parceria com o produtor cultural Pedro Rajão, espalha há dois anos pelo Rio pinturas de personalidades pretas representativas da cultura. É o projeto Negro Muro, que até agora homenageou 14 personagens. Pixingunha, o último deles, foi o mais difícil, pelas dimensões.
Antes, o Negro Muro fez monumentos de grafite para personalidades como Clementina de Jesus, Mussum, Jovelina Pérola Negra, Cartola, Mãe Beata de Iemanjá, Moacir Santos, Marielle Franco, Fela Kuti e João Cândido, o Almirante Negro.
“Estamos em momento de questionar nossos monumentos, pelo mundo a gente vê estátuas dos colonizadores sendo quebradas”, lembra Rajão. “E no maior país preto fora da África, que é o Brasil, temos raríssimos monumentos de exaltação à memória negra, seja nome de rua, estátua ou busto”
O produtor cultural observa que o grafite é essencialmente uma arte negra, pois vem do hip hop, e por isso é o meio ideal para fazer o resgate da memória dessas personalidades “preteridas, esquecidas, ocultas, embranquecidas”.
“É um momento complicado que estamos vivendo, Sérgio Camargo na Fundação Palmares é um exemplo disso”, diz ele. “Por isso a importância de levarmos à rua uma arte direta, democrática, que alcança qualquer classe social, com porte de monumento público, de memória preta”.
Da ideia à finalização, o painel com as imagens de Pixinguinha levou quatro meses para ser feito. Foram gastos 54 litros de tinta para preparar a superfície e 80 tubos de spray.
O artista e os auxiliares trabalharam doze dias sobre uma estrutura de andaimes da altura de três andares, que levou seis dias para ser montada.
“O que a gente faz é trazer a memória das figuras pretas para que as pessoas relembrem e saibam quais são as verdadeiras estátuas que deveriam estar espalhadas pela cidade”, explica Cazé. “Que as pessoas entendam a potência dessas figuras”.
Dos muitos momentos emocionantes que viveu ao fazer os murais, o artista destaca as boas consequências da pintura de João Cândido, em São João de Meriti, onde vive a família do Almirante Negro. A atenção despertada pelo grafite jogou o foco para o museu que conta a história do personagem e rendeu placa de bronze com o nome dele.
Enquanto a pintura está sendo feita surgem pessoas curiosas e brotam discussões sobre os personagens. “Geralmente, quando o Cazé pinta a gente coloca músicas que têm relação com a figura que está sendo retratada, sempre aparecem pessoas para pedir informações sobre a história deles”, conta Rajão.
No início, tudo foi feito com recursos próprios ou pequenas doações. Agora, apesar de ainda ter que driblar a falta de dinheiro, o projeto Negro Muro encontrou alternativas para colorir as paredes da cidade com suas criações.
O gigantesco Pixinguinha que hoje olha a Lapa do alto foi feito com recursos da Lei Aldir Blanc. Um crowdfunding vai viabilizar os próximos trabalhos: um mural com a figura de Elza Soares e outro do poeta Cruz e Souza.
Como define Cazé, é um trabalho de resistência, que vai contra o clima obscurantista que se abateu sobre o país para tratar de racismo e apagamento social.
“A gente gera discussão, vai na contramão do que o sistema fez a vida inteira, que foi colonizar, escravizar e matar os negros”, acredita.
Se esse tipo de resgate sempre foi necessário, nos tempos atuais se tornou imprescindível.