Giovana Xavier: ‘Se quero definir-me, sou obrigada inicialmente a declarar: Sou uma mulher NEGRA’

A convite do projeto Celina, historiadora escreve carta à filósofa francesa, refletindo sobre a atualidade de”O segundo Sexo” 70 anos depois de seu lançamento

Giovana Xavier no O Globo

Giovana Xavier, historiadora e professora da Faculdade de Educação da UFRJ – Foto: Arte de Ana Luiza Costa sobre foto de arquivo

Simoníssima;

Quatro da manhã. Programei o despertador para esse horário. Explicação simples. Quero te escrever embalada pelo vazio de vozes. O tal silêncio, que só é permitido ao “eterno feminino” quando todo mundo se recolhe. Nesse tempo em que a noite cala a palavra “dona de casa” parece fazer mais sentido, pois é quando a maioria das mulheres agarra com unhas e dentes o direito de se tornarem donas da sua própria história. Enquanto velo o sono de meu filhote, abro o computador. Diante da página em branco, penso: escrita e silêncio. Conjugados, esses dois desejos revelam o tamanho da ousadia de uma representante do “segundo sexo”. Como não lembrar de Virginia Wolf em “Um teto para chamar de seu”?

Simone, quinze anos depois da primeira leitura, repasso os dois volumes digitais do teu livro. Recebo, em pensamento, a visita de Cristiane Sobral – “os tempos agora são outros”, versos de sua linda poesia “Não vou mais lavar os pratos”. Nesse novo tempo, reparo. A estudante de mestrado cheia de sonhos tornou-se professora universitária, mãe, dona de casa. Em meio a muitas realizações, sou tomada por um sentimento de estranheza. Ainda que historiadora, doutora íntima das letras, livros e datas, acho esquisito mandar-te uma carta pelos setenta anos de “O segundo sexo”.

Querida Simone, consolidadas muitas transformações também viabilizadas pela qualidade e coragem do seu trabalho, é essencial que saibas. Durante meu longo trajeto como teórica feminista, seus escritos geraram-me dores, raivas, feridas. Através de diálogos profundos com marxismo, psicanálise, literatura e a própria filosofia, você criou uma ciência pioneira, evidenciando, com argumentos inquestionáveis, o machismo, o patriarcado e suas consequências para a humanidade. Esse feito faz de ti superlativa. Mas Simoníssima, cá entre Nós, ao mesmo tempo, escrever 803 páginas baseada única e exclusivamente nas experiências de mulheres brancas também revela suas limitações. Como diria minha avó: Francamente! Rsrsrs

Está sendo ótimo te escrever. Através desse ato compreendo, de forma mais aprofundada, a relevância do trabalho que pensadoras negras tem feito em um Brasil no qual nossas vidas são costuradas com “fios de ferro”, como aprendi com Conceição Evaristo. De posse desses fios, “imagino o futuro” inspirada por Angela Davis. Um futuro, espero que breve, em que sejamos convidadas a escrever cartas para mulheres como Maria Firmina dos Reis. Você a conhece? Se não, por favor o faça. Em 1859, ou seja, 90 anos antes de “O segundo sexo”, essa mulher publicou um livro chamado “Ursula”, primeiro romance da história do Brasil. Genuína e brilhante como você, Firmina, mulher negra maranhense, desafiou as normas vigentes duas vezes. Tornando-se autora e defendendo em sua escrita a abolição da escravidão africana. Como se diz na Bahia, “pegue visão”.

Pense Simone! E ao pensar, habilidade que você executa de forma admirável, é certo que terás desejo de retomar à sua obra. Para ajudar, deixo sugestões que te farão muitíssimo bem. A poesia “Gritaram-me negra”, da peruana Victoria Santa Cruz, e o texto “A categoria política de amefricanidade”, de Lelia Gonzales. Você aprenderá tanto com a poetisa quanto com a antropóloga sobre a pluralidade de ser mulher. Animei aqui. Já estou pensando numa edição ampliada de “O segundo sexo”. Ela virá. E eu, acadêmica feminista que se inspira no teu pensamento, sentirei-me honrada de te prefaciar.

Conheço o tamanho da sua alma. Sei que guardará minhas críticas no melhor lugar do teu coração. Afinal, você sabe a importância de Nós, mulheres falarmos por nós mesmas.

Dada nossa amizade, desejo-te parabéns por seu incrível trabalho. Obrigada por ensinar a importância de mulheres estudarmos a nossa condição! E já que o momento é seu, termino te parafraseando: “Se quero definir-me, sou obrigada inicialmente a declarar: Sou uma mulher NEGRA”.

Beijo no coração, da amiga Giovana Xavier.


Giovana Xavier é historiadora e professora da Faculdade de Educação da UFRJ

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