Governar em função do crime é perigo para a democracia

por Marcelo Semer

Na semana que passou o DataFolha reproduziu uma pesquisa que fez quando da criação do instituto, trinta anos atrás, sobre o medo dos paulistanos.

Concluiu que, diferentemente dos anos 80, o cidadão não teme o crescimento da inflação ou a perda do emprego. Mas que o filho se envolva com drogas ou que familiares sejam vítimas de roubos.

O impacto do noticiário sobre crimes, que vem crescendo nas últimas décadas, tem estimulado enormemente esse temor. É difícil não se sentir a próxima vítima ao ver e rever crimes na TV todos os dias.

Nas últimas edições, com campanhas frenéticas pela redução da maioridade penal, a mídia diminuiu o alarido sobre o preço do tomate e o catastrofismo na economia, para se dedicar quase integralmente à violência urbana.

A sobrevalorização da questão criminal na agenda brasileira, no entanto, pode resultar em consequências mais profundas do que uma disputa política. O que está em jogo é a mudança de um paradigma.

Jonathan Simon, em “Governing Through Crime” (How the War on Crime Transformed American Democracy and Created a Culture of Fear), demonstra como, a partir do final dos anos 60, acelerando-se nas décadas seguintes, a política norte-americana filiou-se claramente a um paradigma do estado policial, invertendo o epicentro das leis, das políticas e das ações governamentais para a criminalidade, abandonando o legado do New Deal.

A guerra contra a pobreza, afirma Simon, virou guerra contra o crime –advertência que soa como alerta oportuno para a política dos trópicos.

O cidadão e o consumidor foram substituídos pela figura da vítima como a marca da identidade nacional.

Penas cresceram, medidas repressivas aumentaram, slogans emocionalmente satisfatórios e substancialmente vazios foram empunhados, como a tolerância zero –sem que isso resultasse, todavia, em decréscimo significativo da criminalidade.

Vítimas não tiveram ganhos sociais, a não ser o aumento generalizado do medo e do controle. Não houve uma distribuição melhor de recursos às cidades, apenas a estigmatização como violentas, das áreas de maior concentração de pobreza.

A seletividade racial, enfim, ficou ainda mais exposta.

Na década de 70, estavam presos 465 homens brancos por 100.000 habitantes nos Estados Unidos. Este número mais do que dobra no começo do século 21. Ainda assim representa apenas um sétimo da proporção entre os negros.

Mais do que qualquer outra população em tempos de paz, aponta o autor, jovens afro-americanos em centros urbanos tem sido submetidos a confinamentos em massa.

A governança pelo crime contaminou o sistema político, que passou a mimetizar o discurso de vingadores, elevou às alturas o poder do Ministério Público, na qualidade de advogado das vítimas e representante da comunidade violada, e de uma maneira geral rebaixou competências e prestígio do Judiciário, que havia tido importante papel na construção dos direitos civis nas décadas anteriores.

O sistema regressivo estimulou, ainda, a criação de estruturas mecanicistas e autoritárias na educação e tem viciado as relações corporativas.

Políticos deixaram de ser avaliados por suas capacidades de aglutinar interesses e obter resultados sociais e passou a ser crucial a habilidade de sensibilizar potenciais vítimas.

Tudo isso fortemente vitaminado pela reprodução sem cessar dos relatos da imprensa –até o New York Times, diz ele, pouco refratário a interesses populares de curto prazo, foi se rendendo a esse estrondo da criminalização midiática.

Nenhuma vítima de crime merece o esquecimento, desprezo ou abandono pelo Estado. 

É imperioso que este cumpra a sua função de investigar, julgar e responsabilizar quem quer que os tenha ferido, sem que isso se transforme em espetáculos midiáticos ou politicamente oportunistas.

Mas cunhar a identificação da nação através da vítima, priorizar no Legislativo um incessante recrudescimento penal e centrar a política dos governos na criminalização é um equívoco que não devemos cometer. Um rebaixamento à democracia, conclui Simon.

Para afastar qualquer viés partidário da discussão, o autor indica que dois dos principais carros-chefes da nova criminalização foram produzidos em governos e congressos de maioria Democrata, na iminência de intrincadas disputas eleitorais.

Se isso também pode servir de alerta por aqui, as concessões ao conservadorismo não evitaram os revezes nos pleitos.

 

 

Fonte: Terra

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