Quando o presidente mais jovem da história do Chile, Gabriel Boric, chegou ao Palácio de la Moneda, em Santiago, após tomar posse, no último dia 11, era horário de rush de uma sexta-feira útil, chilenos saíam do trabalho no centro da cidade e tanto o cercado preparado pela segurança palaciana para ser ocupado pela população quanto as ruas adjacentes estavam tomados. A aglomeração era imensa para ouvir o primeiro discurso do ex-líder estudantil, mas se enxergavam poucas bandeiras de movimentos sociais ou partidos políticos.
A bandeira que dominava ali era mesmo a do Chile, embora não estivessem totalmente ausentes as do partido do presidente – o Convergência Social. Claramente não havia a reivindicação da vitória por um partido ou por um movimento naquela praça. O clima não era esse. Durante o discurso, Boric tampouco destacou siglas ou coalizões com ênfase. Mencionou mais vezes o termo “mulheres” do que qualquer partido. Citou somente uma vez a coalizão da qual faz parte, a Apruebo Dignidad, que tem uma forte base feminista, e fez jus a essa força no seu primeiro pronunciamento: “por acá resuena el clamor feminista y su lucha por la igualdad” (“por aqui ressoam o clamor feminista e sua luta pela igualdade”, em português).
“Estávamos lá, as feministas, as fundadoras do Convergência Social e dos outros partidos que formam a coalizão, mas no país, mesmo com esse resultado das eleições, a gente vem vivendo uma crise de representatividade, uma descrença na política tradicional, e nesse momento as bandeiras não vêm mesmo na frente”, explicou à Gênero e Número Sabrina Aquino, historiadora e líder da comissão de Relações Internacionais do Convergência.
No Chile, diferentemente do que ocorreu no Brasil nas eleições de 2018, a crise de representatividade pendeu nas urnas para a esquerda e para um projeto político que defende uma profunda transformação social, o enfrentamento ao neoliberalismo e às desigualdades. Foi a campanha de Boric que conseguiu canalizar a confiança da maior parte do eleitorado após o turbulento “Estallido Social”, o período de protestos que abalou o Chile em 2019.
“É um governo para a maioria”, afirma a ministra Camila Vallejo, que assumiu a Secretaria Geral do governo. Ela é uma das 14 ministras que formam o ministério majoritariamente feminino – são 24 ministros no total.
Vallejo é um dos rostos feministas mais conhecidos no Chile. Em 2011, quando se destacava como liderança comunista do movimento estudantil, já defendia a pauta da descriminalização do aborto. Naquela época, a interrupção da gravidez não era permitida em nenhuma situação no país – o que viria a mudar em 2016, com a descriminalização parcial. Junto ao agora também ministro Giorgio Jackson, secretário geral da Presidência, e ao presidente Boric, ela compõe a tríade dos líderes estudantis que na última década pavimentaram a renovação política chilena e que agora governam no primeiro escalão.
Camila, mas não apenas ela, representa também a chegada do feminismo antineoliberal ao centro do poder no Chile. A corrente é fortalecida pela Ministra da Mulher e da Equidade de Gênero, Antonia Orellana. Diferentemente de Vallejo, que nos últimos oito anos esteve no Congresso como deputada, Orellana não havia ocupado cargos eletivos e, inclusive, não conseguiu uma cadeira ao tentar compor a Assembleia Constituinte, em 2021. Mas tem uma trajetória de forte militância no campo dos direitos das mulheres e de gênero.
Um dia após a posse do presidente e do ministério, Vallejo e Orellana marcaram presença no Encontro internacional Feminista Macarena Valdés, onde a Gênero e Número também esteve. Não era uma agenda obrigatória para elas. Era mesmo o espaço de celebração que escolheram. Mas Orellana fez um alerta sobre o avanço da direita, que segue expressiva no país: “O avanço da ultradireita repercute em todas, pois falamos de um feminismo que também é de classe, interseccional, e entendemos que nenhuma se salva só, por isso necessitamos de todas, a crise é global”, convocou. No encontro, havia poucas mulheres negras e indígenas.
Das margens ao centro
O deslocamento rápido e efetivo do feminismo no Chile das margens ao centro também é resultado da convergência entre as reivindicações das estudantes secundaristas e universitárias por uma educação não sexista e dos coletivos de mulheres organizados por lideranças históricas e jovens nos últimos anos.
Assim como na Argentina, trata-se hoje de um movimento bastante descentralizado, distribuído pelo país e que vem alcançando expressiva representatividade política em diferentes esferas decisórias, como pode ser observado na Convención Constitucional, a assembleia chilena, que neste momento está trabalhando intensamente na construção de uma nova Constituição, a primeira do mundo redigida com paridade de gênero.
Nos primeiros dias do Governo Boric, a Gênero e Número esteve na Convención Constitucional, no centro de Santiago, onde ouviu mulheres constituintes, acompanhou sessões, votações importantes para os direitos das mulheres e constatou que o bordão “Nunca más sin nosotras”, um dos principais gritos das mulheres chilenas que tomaram as ruas na “ola feminista” de 2018, tornou-se prática diária da nova política.
Constituinte
Ainda de ressaca da vitória de um governo que se autodeclara feminista, as mulheres chilenas voltaram a comemorar a força da mobilização do movimento que há quatro anos já toma as ruas e agora também se faz presente nos espaços institucionais da política. Na terça-feira, 15 de março, elas protagonizaram vitória importante na Convención Constitucional, a Assembleia Constituinte do Chile, que, desde julho de 2021, trabalha para a construção de uma nova Constituição no país.
Elas lideraram o processo que levou à aprovação, com mais de ⅔ dos votos no plenário, do artigo que amplia os direitos sexuais e reprodutivos no país. O Artigo 16, redigido pela Comissão de Direitos Fundamentais, prevê que o estado assegure a todas as mulheres e pessoas com capacidade de gestar o direito à interrupção voluntária da gravidez, assim como o direito também a uma gravidez plena, se essa for a escolha. O artigo destaca o direito de decidir de forma livre, autônoma e informada sobre o próprio corpo, sobre a reprodução, o prazer e a contracepção. Aprovado, integra agora a versão do texto Constitucional que ainda este ano vai a plebiscito.
Alguns instantes antes da votação, a líder da Comissão de Direitos Fundamentais, Janis Meneses, falou à Gênero e Número. “Hoje temos a oportunidade de fazer história no nosso país, consagrar constitucionalmente os direitos sexuais e reprodutivos e a educação sexual integral, o que é uma demanda não apenas do movimento feminista no país, mas no mundo”, afirmou. “Trabalhamos muito para isso, muito mesmo, tanto dentro quanto fora da Comissão, para explicar aos constituintes em geral quais são as características desse artigo, qual será seu impacto para o país”, disse. Horas depois, Meneses celebrava junto às companheiras a vitória no plenário, onde cartazes feministas e pañuelos verdes eram parte do cenário.
Meneses, 33 anos, candidatou-se à Constituinte em maio de 2021 na lista dos Movimentos Independentes, representando o distrito de Valparaíso e apresentando uma proposta constitucional feminista e antipatriarcal. Ela é uma das 77 mulheres que integram a Convención Constitucional, onde há 78 homens com a mesma tarefa. A primeira liderança a presidir a Convención, eleita em 2021, é também sinal da ampliação da participação social no país: a líder mapuche e professora Elisa Loncón.
As mulheres mapuche têm tido forte protagonismo na Convención, onde carregam como pauta principal a garantia dos direitos indígenas e o direito à terra. As que já vêm fortalecendo e ampliando o movimento feminista há anos, como Machi Francisca Linconao, saíram do prédio para falar às ativistas e ao público que se concentrou para pressionar pela aprovação do Artigo 16.
Entre as 77 mulheres que trabalham diariamente na Convención Constitucional há, claro, representantes da direita, as mulheres que votaram contra o Artigo 16. Mas é interessante perceber como os termos relacionados à luta das mulheres feministas estão abertamente colocados nesse momento político do Chile e se sobressaem às vozes conservadoras. Não há eufemismos para falar em “patriarcado”, como se essa fosse uma estratégia necessária para ampliar o diálogo sobre direitos na sociedade, algo ainda bem comum na política institucional do Brasil. No Chile, as reivindicações já estão postas, estão em votação. A mudança é feminista, sem meios termos.
Não significa que seja uma construção simples, contudo. “Foi muito trabalhoso transformar nosso sonho em uma norma, em um artigo”, me disse Janis Meneses, com os olhos marejados. O artigo 16 não foi aprovado na íntegra. O trecho que falava sobre o Estado reconhecer e garantir o direito de as pessoas se beneficiarem do progresso científico para exercer de maneira livre e não discriminatória os direitos reprodutivos não teve a votação necessária, mas como alcançou mais de 90 votos, ainda voltará ao plenário nos próximos meses. A versão do texto aprovado agora já garante, entretanto, a descriminalização do aborto no Chile, o qual hoje só é permitido em três situações: em risco de morte para a mãe, quando há inviabilidade do feto se desenvolver ou em caso de gravidez resultante de estupro.
O texto aprovado do artigo sobre direitos sexuais e reprodutivos:
As votações dos Direitos Fundamentais, que contam com cinquenta artigos, incluindo liberdade de expressão, direito à livre associação e outros aspectos-chave para a democracia chilena, seguem no plenário da Convención Constitucional ao longo de Março.
*Giulliana Bianconi é diretora da Gênero e Número