Gritaram-me macaca

Na última semana de outubro, as redes sociais foram tomadas pela campanha “Primeiro Assédio”, na qual mulheres de todo o Brasil relataram situações em que sofreram assédio masculino ou, em casos mais graves, foram vítimas de estupro. Organizada pelo Grupo feminista Think Olga, a mobilização foi uma resposta às mensagens de teor sexual dirigidas a Valentina, garota de 12 anos participante do programa MasterChef Junior, da Bandeirantes.

Enviado por Luana Tolentino via Guest Post para o Portal Geledés 

Apesar de apoiar e considerar a manifestação de grande importância, principalmente num momento de crescimento vertiginoso de casos de violências contra as mulheres e de pautas que tentam confiscar os nossos direitos, ao contrário de muitas amigas, não me senti à vontade em participar do movimento. Enquanto lia as postagens, me identificava com alguns casos que eram expostos, porém, de forma mais intensa, lembrava das diversas ocasiões em que fui alvo do racismo e nas fraturas que esses acontecimentos trouxeram para a minha vida. Passei todo mês de novembro com vontade de escrever sobre isso, mas o correr dos dias e o acúmulo de atividades tornaram esse desejo praticamente impossível.

Com certo atraso, tomei conhecimento da campanha “Senti na pele”, idealizada pelo ator Ernesto Neves. A ideia é que anônimos e famosos narrem situações em que foram vítimas de racismo. Pronto. Era o mote que faltava para que eu finalmente pudesse dedilhar o meu texto.

Conheci o peso da discriminação racial aos quatro anos, quando coloquei os pés na escola. Certamente, foi antes até. Mas os fatos mais marcantes ocorreram aos 9 e aos 11, quando estava nas antigas terceira e quinta série, respectivamente.

Cristiane era a aluna mais velha da sala. A mais alta. Tinha medo dela. Não sei bem o porquê. Talvez por causa do histórico de indisciplina que ela possuía. Ela já havia repetido o ano duas vezes. Todos os dias, na fila da entrada, Cristiane chegava bem perto, e no meu ouvido, dizia baixinho: MA-CA-CA. Permanecia muda. Calada. Minha mãe havia dito que eu não deveria reagir de forma alguma.

-Não liga, Luana. Deixa pra lá. Uma hora ela perde a graça e para com isso.

Um dia me cansei. Desobedeci as ordens da minha mãe e decidi contar tudo para a Nazaré, minha professora. Mal havia acabado de falar, ela pediu que eu ficasse diante de todos os alunos. Como uma médium, sentia que o pior estava por vir. Minhas mãos começaram a suar. Minhas axilas também. A caminhada até o quadro exigiria poucos passos, mas transformou-se numa verdadeira peregrinação. Nazaré me segurou pelo braço e lançou a seguinte pergunta:

– Olhem bem para a Luana!. Vocês acham que ela se parece com uma macaca?

Meu mundo caiu. Um som ensurdecedor tomou conta da sala. De cabeça baixa, ouvi gargalhadas e batidas nas carteiras. Nazaré tentou conter a turma. Sem sucesso. Ela que era dada a esbravejar com os alunos, deu um último grito:

– Luana, volte para o seu lugar agora!

Voltei sem olhar para os lados. Era aula de matemática. Estávamos aprendendo a tabuada do três. Comecei a repetir mentalmente: 3 X 0 = 0, 3 X 1 = 3, 3 X 2 = 6. Fiquei tão perturbada que mesmo sabendo tudo de cor e salteado, não conseguia avançar. Insistia e começava novamente: 3 X 0 = 0, 3 X 1 = 3, 3 X 2 = 6. Até que desisti. Inclusive de aprender a matéria.

Acho que foi nesse momento que me convenci de que não havia outra saída a não ser estudar. Na minha cabeça, se eu me tornasse uma garota inteligente, a Cristiane ou qualquer outro aluno não teriam coragem de me aviltar. Coisa de criança. Mal sabia eu que no Brasil, os títulos e a ascensão social não deixam a população negra imune ao racismo. Ou nas palavras do Mestre Milton Santos: “Só excepcionalmente, [o negro] não será humilhado, porque a questão central é a humilhação cotidiana. Ninguém escapa, não importa que fique rico”.

A atitude da professora foi o passaporte para que a Cristiane se sentisse à vontade para me humilhar. No dia seguinte, lá estava ela me chamando de macaca novamente. Dessa vez, na frente de todos. Em alto e bom som. Ela não tinha mais porque se esconder. Parecia que não havia nada mais prazeroso para ela. No final do ano, ela foi reprovada mais uma vez. Ainda bem.

Dois anos se passaram. Mudei de escola. Fui para a quinta série. Estava com onze anos. Comecei a estudar em um colégio enorme, com pedagogia inovadora e arquitetura moderna para os padrões da época. Havia campos, salas e quadras para a prática de todos os esportes, inclusive ginástica olímpica, atletismo e judô. No campeonato de futebol feminino, fui a artilheira. Fiz o gol do título.

Tudo corria bem, até que encontrei outro repetente. O Bruno. Nunca me esqueci. Dele, do nome, e do sobrenome, que prefiro não mencionar aqui. Bruno estava há três anos na quinta série. Ele era maior e mais perverso que a Cristiane. Não se contentando em apenas me chamar de macaca, fazia os sons e os gestos do animal. Todos os dias. Principalmente na frente dos meninos. O objetivo dele era me ridicularizar. Pelo fato de eu ser menina e negra.

O que havia acontecido naquele ano de 1993 ainda permanecia vivo na minha memória. Não seria tola a ponto de pedir ajuda para outra professora. A orientação da minha mãe também não resolveria o problema. Sabia que o meu pai não iria me socorrer. Então, recorri ao Dennis, meu irmão mais velho, que tem quase dois metros de altura. Contei o que se passava comigo. No dia seguinte, ele estava na escola.

A conversa foi breve. Dennis repetiu tudo o que eu havia dito. Como é comum entre os racistas, Bruno negou cada palavra, cada gesto. Disse que não passava de um mal-entendido. Parecia uma ator. Após ouvi-lo, Dennis deu o recado:

– Se eu souber que você mexeu com a minha irmã mais uma vez, você vai se ver comigo!

Finalmente me senti amada, acolhida, protegida. Bruno pediu desculpas.Nunca mais ousou dizer qualquer coisa que pudesse me ofender. Daquele dia em diante, depois do meu pai e da minha mãe, o Dennis passou a ser a pessoa mais importante da minha vida. E assim foi. Até 2013. Quando o que era vidro se quebrou.

Vinte anos se passaram desde que tudo isso aconteceu. Já não sou aquela menina que tinha medo dos alunos repetentes. O combate ao preconceito racial é parte da minha vida. Ainda assim, enquanto escrevo esse texto, tenho a sensação de estar sentada no divã, diante da Carla, minha analista, numa sessão de regressão consciente. Minhas mãos e minhas axilas suam da mesma maneira que suaram quando a Nazaré pediu que eu ficasse diante da turma. Tenho os mesmos sentimentos que experimentei nos momentos aqui relatados. A verdade é que a falta de habilidade dos meus pais para lidar com a situação, a omissão dos meus professores, e a crueldade da Cristiane e do Bruno estarão sempre presentes no meu ser. Ás vezes de forma mais leve, outras, mais pesada, mas sempre presentes.

Escrever exige muito. Escrever um texto carregado de sentimentos e experiências traumáticas exige muito mais. Apesar disso, enquanto mulher, negra e cidadã, me sinto na obrigação de participar da campanha #sentinapele. Escrevo na esperança de que mulheres e homens negros se sintam motivados a escrever também, mesmo que reviver essas experiências tragam dores (ancestrais). Escrevo na tentativa de provocar reflexões a respeito das consequências nefastas provocadas pela discriminação racial, principalmente para as crianças. Além de crime, o racismo é responsável por sérios danos psicológicos e sociais.

“Do silêncio do lar ao silêncio escolar”, meninas e meninos negros têm sido massacrados por apelidos, agressões, xingamentos e representações que além de negar-lhes a humanidade, contribuem para o baixo desempenho na escola, e para que se tornem adultos inseguros e com baixa autoestima.

Mudar esse quadro perverso exige muito trabalho e compromisso. O governo, em suas três esferas, tem que se empenhar cada vez mais no combate ao racismo, mas esse deve ser um compromisso de todos, principalmente de pais e professores. Cristianes e Brunos precisam ser educados para o respeito à diversidade, para que Luanas de todo o Brasil tenham orgulho de seu pertencimento racial e não precisem mais viver e contar histórias como esta.

* O título desse texto é em alusão ao poema “Gritaram-me negra”, da escritora peruana Victoria Santa Cruz, falecida em 30 de agosto de 2014.

** Luana Tolentino é Professora e Historiadora. É ativista dos Movimentos Negro e Feminista.

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