Grupo de ativistas combate impunidade em casos de violência policial na periferia

Richard, Caique, Rogério… As vítimas da polícia em São Paulo têm nome, mas eles muitas vezes são esquecidos, assim como suas histórias e seus direitos. Só em 2020, 814 pessoas foram mortas por forças policiais no estado. Além de execuções, jovens moradores dos bairros de periferia também sofrem com prisões forjadas e tortura por agentes do estado, independentemente de terem ou não envolvimento com o crime.

Com o objetivo de garantir a defesa dessas pessoas e combater a impunidade da violência por agentes do estado, um grupo de ativistas criou em 2017 a Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio, um movimento que atua em bairros pobres da região metropolitana de São Paulo.

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São dois grupos principais de atuação. O primeiro é formado por cerca de 40 articuladores, que vivem nas comunidades e são referência para os moradores buscarem apoio quando há ocorrências. Eles estão distribuídos em bairros vulneráveis das regiões Sul, Norte, Leste e Oeste da capital paulista, além de localidades no Grande ABC, Osasco e Limeira. O segundo grupo é formado por coletivos, ONGs, pastorais e profissionais voluntários ativistas, que atuam principalmente em duas frentes: a de defesa jurídica e a de apoio psicológico.

Há ainda a formação de grupos de trabalho com o Ministério Público e com a Defensoria Pública para construir novos protocolos de atuação das forças de segurança pública, como explica uma das articuladoras da rede, Marisa Fefferman, que também coordena o grupo de Juventude e Violência do Conselho Latino Americano de Ciências Sociais (Clacso).

“Não existe política pública em São Paulo para lidar com a violência policial. Por isso, estamos há três anos e meio nos reunindo com o Ministério Público para exigir o controle externo das polícias”, afirma Marisa.

A Rede também tem um grupo de trabalho com a Defensoria Pública para facilitar o acesso dessas vítimas ao serviço gratuito.

Em novembro do ano passado, o movimento apresentou uma proposta para assegurar o afastamento automático de qualquer agente público que tenha porte de arma pelo exercício da função, como policiais e guardas municipais, e se envolvam em ação que resulte em morte.

A medida, segundo a Rede, pode ajudar a enfrentar um inimigo comum no combate à violência de estado: o medo. “Às vezes, há um silenciamento da própria comunidade. Familiares, testemunhas, pessoas que eventualmente viram ou sabem de alguma coisa têm muito medo das forças policiais”, afirma Marina Toth, uma das advogadas que integram a rede.

Para Marisa Fefferman, os grandes fomentadores da violência policial são “o racismo estrutural e a desigualdade social”.

— Foto: Elcio Horiuchi/G1

Produção de provas

Uma das formas de atuação da Rede é na produção de provas para os casos. Isso porque este é um dos principais fatores que impedem que as investigações de abuso policial se transformem em ação penal e que os agentes que cometem crimes sejam julgados e punidos.

“Nos casos de morte por intervenção policial, nossa primeira barreira, muitas vezes, é a delegacia. É comum que haja uma tentativa de criminalização da vítima, como uma forma de legitimação da violência estatal. Por isso, a gente vem tentando criar mecanismos para obter cada vez mais provas independentemente do estado”, afirma Marina.

Nesses casos, tanto as redes sociais quanto as câmeras, de celular e as que ficam na rua em frente aos estabelecimentos comerciais, têm ajudado bastante.

Um exemplo que ganhou notoriedade foi o de Rogério Ferreira da Silva Júnior, de 19 anos, morto na tarde de 9 de agosto após ter sido perseguido e abordado por dois policiais militares de motocicleta no Sacomã, Zona Sul de São Paulo.

“Meu filho acordava às 5h, ia trabalhar, chegava às vezes em casa e atendia no salão, que ele era barbeiro também. Ele nunca teve preguiça de trabalhar, e eu sempre fiz o possível para que ele nunca precisasse fazer nada errado para que nunca acontecesse isso com ele”, conta a mãe do jovem, a cabeleireira Roseane da Silva Ribeiro.

Era dia do aniversário do rapaz quando ele foi atingido nas costas pelo policial Guilherme Tadeu Figueiredo Giacomelli, da Ronda Ostensiva com Apoio de Motocicletas (Rocam) da Polícia Militar. O policial foi acusado de homicídio doloso (intencional) por ter atirado nas costas do jovem durante a perseguição.

Ele foi o responsável pela primeira versão do fato que chegou à delegacia: Giacomelli disse que Rogério se virou para trás como se fosse atirar, e por isso ele fez o disparo, em legítima defesa. Por conta da gravação de uma câmera de segurança, a história foi desmentida.

“Você vê nitidamente que o Rogério não olha para trás nem não faz menção de atirar em ninguém”, descreve Marina, que cuida do caso.

Ela conta que a câmera registrou também a ação dos policiais após a vítima cair da moto: eles não revistam Rogério, em busca da arma, um procedimento padrão. “Eles chegam perto, depois olham para o outro lado… Eles não sacam a arma em momento algum, e isso deixa muito claro que eles sabiam que estavam atirando em uma pessoa desarmada”, argumenta.

Para a advogada, a Rede tem o papel de pressionar as instituições a investigar melhor esses casos e a criar protocolos mais adequados para lidar com os casos de violência estatal. “É uma tentativa de realmente atuar contra a impunidade da violência de estado”, sintetiza Marina.

Apoio psicológico

Além do apoio jurídico, Roseane conta que, uma vez por semana, se reúne por videoconferência com outras mulheres que perderam seus filhos. A reunião virtual faz parte do apoio oferecido pela Rede aos familiares de vítimas das forças policiais.

“É uma terapia, com psicólogo. É muito bom. A gente aprende a conviver com a situação. Cada mãe consegue falar um pouco do seu filho, como ele era, como aconteceu… Sempre vão entrando mais mães no grupo”, conta Roseane.

A Rede também oferece apoio aos jovens dessas regiões, que perdem amigos e familiares, orientando-os como protestar de forma não violenta.

“Nós temos grupos de cerca de 100, 200 jovens que deixam de se sentir totalmente vulnerabilizados. Esses jovens, que têm um irmão, um amigo preso injustamente ou executado ou torturado conseguem perceber que eles podem dizer o que eles pensam. Que podem olhar o mundo e não achar que o futuro deles vai ser a morte ou o encarceramento”, diz Marisa.

Senso de comunidade

A relação entre os articuladores e os voluntários é crucial para a Rede chegar às demandas reais dos espaços vulneráveis.

“Essa relação é o que possibilita que a gente conheça a realidade dessas pessoas. É de dentro para fora. É com a quebrada que a gente pensa em estratégias de descobrimento de provas, de proteção, para que toda a comunidade consiga sair do lugar de criminalizada. A gente substitui o medo por uma relação de confiança”, define Marisa.

Para as integrantes do movimento, a Rede precisa crescer. “A gente está tentando, inclusive, recrutar mais pessoas, porque onde ela já existe ela funciona como uma barreira para essa enorme violência estatal”, avalia Marina.

Bruno Paes Manso, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP, acompanha o trabalho da Rede e ressalta o fato de ela saber usar as redes sociais para obter informação e se articular com a mídia independente.

“Nos anos 90, você tinha o hip hop, que teve esse papel. Hoje o cenário é outro, com muitas pessoas com ensino superior, com contatos em diversas esferas, que permitem que se saiba de fatos que antes ficavam ocultos”, diz Paes Manso.

Como exemplo dos efeitos dessa visibilidade, ele cita o caso de uma comerciante de Parelheiros, de 51 anos, que teve o pescoço pisado por um policial militar em maio do ano passado. Após repercussão nacional, a Corregedoria da PM instaurou inquérito militar para apurar o caso, e os dois policiais que aparecem no vídeo foram afastados do serviço ativo da corporação.

A diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Samira Bueno, que também acompanha o trabalho da Rede em São Paulo, avalia que a iniciativa é replicável em outros estados do país.

“Uma rede de ativistas que assumem posição de liderança e que estão com disposição de empoderar outras pessoas da sociedade civil a terem consciência de seus direitos é capaz de pressionar e apoiar o poder público em torno de mudanças. São elementos que podem ser levados a outros locais do país e que podem mudar a vida de muitas pessoas”, analisa Samira.

Banco de iniciativas

Um dos objetivos do Monitor da Violência desde o início do projeto é apontar também soluções para combater a violência no país. Por isso, a ideia é elencar iniciativas como essa e criar um banco com outras, que possa ser acessado tanto pelos leitores como por gestores públicos.

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