O que era suspeita, alerta, aviso tornou-se comprovação escancarada. Porções cada vez maiores do território do Grande Rio estão sob controle de grupos armados. Chefes do crime não mais se intimidam nem com a presença nem com o poder de fogo de policiais, ora tão em risco quanto a população civil. Foi assim ontem, no Complexo de Israel, um conjunto de bairros do subúrbio carioca transformado pelo traficante Peixão em feudo, com direito a fossos à Idade Média para deter a entrada de blindados das forças do estado. Assim tem sido nas comunidades da Tijuquinha e da Muzema, na Zona Oeste, onde duas dezenas de ônibus já foram sequestrados, em uma semana, para formar barricadas contra os agentes do estado.
Não faltam estatísticas para expor a humilhação que o crime organizado impõe ao Estado do Rio, dia sim, outro também. Nas contas do Instituto Fogo Cruzado, a Avenida Brasil, principal via de acesso à capital fluminense, que se estende da Zona Oeste à área central, ontem foi cenário do 61º tiroteio do ano. No início da semana, o Rio Ônibus, sindicato das empresas do setor, contava 109 veículos sequestrados e oito incendiados apenas em 2024, na cidade do Rio. E segue contando.
Autoridades estaduais costumam relacionar a escalada do crime à decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), de 2020, que suspendeu — e posteriormente regulou —operações da polícia em favelas cariocas. Ainda ontem, o governador se referiu à ADPF 635, chamada ADPF das Favelas, ao comentar a saraivada de tiros que matou três trabalhadores dentro de veículos na Avenida Brasil: num carro de aplicativo, num caminhão, num ônibus. Outras três pessoas ficaram feridas, entre as quais um suspeito. No Rio, o direito de ir e vir é risco de vida.
Foi de partir o coração o depoimento, ainda em choque, de Adonias Claudio dos Santos, que viu o amigo Renato Oliveira, 48 anos, levar um tiro na cabeça dentro do ônibus da linha 493 (Central-Ponto Chic). Ele dormia quando foi alvejado. Está no DNA da metrópole mal planejada — que obriga trabalhadores a percorrer dezenas de quilômetros para ir de casa ao trabalho, à escola, à universidade, a consultas médicas e até a atividades de lazer — complementar sono e leitura no transporte público. Dormir no ônibus, agora sabemos, pode ser fatal.
39 tiroteios registrados pelo Fogo Cruzado no Complexo de Israel neste ano, 22 ocorreram durante operações policiais. Não é por falta de intervenção do estado que a segurança pública no Rio de Janeiro está em frangalhos. Aqui, há um governador e nada menos que cinco secretarias encarregadas da área: Segurança Pública, propriamente; Secretaria de Polícia Civil; Secretaria de Polícia Militar; Secretaria de Administração Penitenciária; Secretaria de Defesa Civil.
Nesta semana, a polícia apresentou uma facção criminosa, denominada Povo de Israel, nascida no cárcere, que já soma 18 mil integrantes, 42% dos detentos no estado. A organização é dedicada a falsos sequestros, extorsão por telefone e venda de drogas. Tudo feito dentro dos presídios. No Rio, faltam comando, inteligência, articulação, controle. E os grupos armados sabem. Prova disso é que já não se intimidam em enfrentar a polícia.
A PM planejava entrar ontem no Complexo de Israel em ação de combate a roubos de automóveis e de carga, além de dar condições para operadoras da telefonia restabelecerem serviços de internet. Recuou diante da reação, nas palavras do governador, “desproporcional” dos criminosos que a Inteligência da PM não foi capaz de prever. Sabemos que Castro prefere chamar sequestro de ônibus de subtração de chaves. Qual o eufemismo para Inteligência policial que subestima a capacidade de reação de criminosos?
A PM acertou em bater em retirada, porque nada justificaria (mais) perdas de vidas civis. Contudo a fragilidade do estado ficou evidente para o crime. E também para uma população que, tendo reeleito em primeiro turno o governante há dois anos, ficou ao léu, numa manhã de quinta-feira. Poucas imagens envergonharam mais o Rio de Janeiro que a quantidade de homens e mulheres, jovens e idosos, deitados em plena pista a se proteger sozinhos das balas disparadas pelo bando de Peixão.
Um ano atrás, no máximo de ousadia até então, 35 ônibus foram incendiados, de uma só vez, por uma milícia da Zona Oeste. Castro, em resposta, anunciou que prenderia Zinho e Tandera, milicianos, e Abelha, chefe do Comando Vermelho. Zinho se entregou à Polícia Federal na noite de Natal de 2023. Tandera e Abelha ainda flanam. Peixão impõe terror a moradores, terreiros de umbanda e candomblé, igrejas católicas das redondezas e a quem passa na Avenida Brasil.
De 2006 ao ano passado, a porção de território do Grande Rio sob domínio de grupos armados saiu de 9% para 19%, segundo mapeamento do Grupo de Estudos de Novos Ilegalismos da UFF. O crime avança sobre áreas cada vez maiores. Não se restringe aos morros; tomam o asfalto; atacam na pista. Ontem, cinco estações de trem, além de BRTs e dezenas de linhas de ônibus, pararam com o tiroteio; 17 escolas fecharam. No Rio de Janeiro, a soberania territorial do Estado foi subtraída, enquanto autoridades esperam a chave reserva.