‘Harlem’ e ‘Insecure’ desbancaram mulheres brancas do lugar universal

Enviado por / FontePor Rute Pina, do Universa

Se eu te contar que, no final de semana, assisti a uma série de comédia com uma protagonista que tem lá os seus 30 anos, é uma professora com pós-doutorado na Universidade de Columbia, em Nova York, e ainda sofre pelo ex-namorado com quem terminou há quatro anos, qual imagem você faria desta personagem? O mais provável é que você tenha imaginado uma mulher branca.

A personagem Camille, de “Harlem”, interpretada por Meagan Good Imagem: Sarah Shatz / Amazon Prime Video

Para se defender, você pode me dizer que fez essa associação porque mulheres negras são minoria no meio acadêmico e são minoria como protagonistas no audiovisual. Narrativas sobre amores, desilusões, frustrações cotidianas são protagonizadas por pessoas brancas porque são consideradas histórias universais. Para negras, indígenas, asiáticas ou qualquer outra mulher racializada, são reservadas as histórias de “nicho”. Elas são o “outro”.

O que estou dizendo não é nada novo. Intelectuais como o psiquiatra Frantz Fanon, na década de 1950, ou a psicóloga Grada Kilomba, mais recentemente, se debruçaram sobre como a branquitude não se enxerga como raça, mas como “o universal”.

Séries televisivas protagonizadas e produzidas por pessoas negras invertem essa lógica ao colocar personagens negras em contextos negros para falar de amor, suas carreiras e desilusões —elas não são novas, mas ganharam destaque (e investimento financeiro, vale dizer) com o sucesso de “Insecure”, obra-prima da atriz e roteirista Issa Rae, produzida pela HBO entre 2021.

Mas a série que assisti é outra, surgida na esteira do sucesso de “Insecure”. Se chama “Harlem”, produção da Prime Video, plataforma de streaming da Amazon. A produção estreou em dezembro de 2021, mas só consegui ver neste mês. A personagem com pós-doutorado é a protagonista, Camille. Eu estava órfã da série de Rae, que acompanhei por cinco anos e terminou também no final do ano passado, quando me disseram que “‘Harlem’ era a nova ‘Insecure'”.

Talvez por comparar com minha série favorita que havia acabado, achei os diálogos da série do Prime Video um pouco forçado quando vi os primeiros episódios. E muito militantes —algo que costuma me irritar são mensagens políticas empurradas, sem sutileza. Mas aí me lembrei de conversas banais no bar com amigos sobre temas como colorismo e pensei que é possível, sim, esses diálogos fora das telas.

Uma cena em que Camille (Meaghan Good) encontra o namorado enquanto protesta contra a gentrificação me rendeu boas risadas. Me lembrou um café em Santa Cecília, bairro descolado no centro de São Paulo, na região da redação de Universa, e que vive o mesmo drama do bairro nova-iorquino Harlem, onde restaurantes chiques e galerias de artes coabitam com um processo de expulsão dos mais pobres e aumento da população de rua.

Uma amiga e eu, ambas negras que transitam em espaços brancos com frequência, confessamos dias desses que gostamos de frequentar esse café, mas odiamos o quanto é caro e que toca Racionais MC’s para pessoas brancas. Mas amamos as empanadas de cogumelos —”Harlem” compreende bem e capta essas contradições, ao mesmo tempo que não olha essas narrativas como histórias “de gueto”.

Onde mais me identifico com essas séries? Elas colocam a mulher negra para viver as histórias que normalmente são vividas por brancas.

O que roteiristas dizem

Decidi conversar com profissionais negras do cinema para entender em que essas produções podem ser chamadas revolucionárias, do ponto de vista técnico. Perguntei primeiramente à roteirista e diretora Ana Julia Travia, que faz parte do coletivo de artistas negros Legítima Defesa, e dirigiu trabalhos como o curta “Outras” e o videoclipe “O Que Se Cala”, de Elza Soares.

Ela concordou que o que essas séries trazem de “refrescante” para dramaturgia é a mulher negra lidando com trabalho, relacionamentos e família em um contexto de certo conforto econômico e sem grande sofrimento. Situações cotidianas divertidas e engraçadas.

O que tem de revolucionário é os personagens negros terem uma humanidade que é muito difícil de se ver.

“Ouso dizer que ‘Harlem’ é um pouquinho mais careta que ‘Insecure’. Traz uma profundidade, em ‘Insecure’, a Isa ser uma mulher insegura e, por isso, parecer confusa. Isso é bem legal de ver, principalmente para pensar a classe média negra americana, que tem essa coisa de ser sempre duas vezes melhor. Ela não é tão perfeita, está errando e mulheres negras podem errar.”

Também conversei com a roteirista Belise Mofeoli, do Comitê de Equidade e Representatividade Racial da ABRA (Associação Brasileira de Autores Roteiristas), que criou o “Teste Mofeoli'”, lista de perguntas a se fazer para não criar personagens estereotipados. Para ela, o audiovisual normalizou, ao longo dos anos, as personagens negras “amigas de protagonistas”.

“Elas estão lá só para serem escadas. Arco dramático e vida pessoal? Esqueça. E olha a bola de neve: personagem rasa pode cair a qualquer momento e, não raro, são as primeiras a serem alvejadas em narrativas policiais e de terror. Isso remexe em feridas não cicatrizadas também em quem assiste. É impossível não ver como herança de um período em que fomos obrigados a trabalhar de graça e sob tortura colonizadora. A única palavra que me ocorre para cenas assim é fetiche.”

Já “Insecure” e “Harlem” falam de mulheres poderosas trabalhando, amando, sofrendo, temendo, como “Sex and the City” e “Girls”, ambas da HBO, mas que, na minha opinião, são bem excludentes ao pensar diversidade —para não dizer racistas.

Para Mofeoli, comparar essas séries com produções do mesmo tema, porém, com protagonismo branco, é injusto. “Principalmente se for para dizer que não são modelos narrativos originais. É absolutamente revolucionário mulheres pretas sendo amadas, com sucesso, à parte de suas orientações sexuais. Apenas são. Se pessoas brancas não aguentam mais ouvir falar da solidão da mulher negra, imaginem nós, que a vivenciamos diariamente”, afirma.

“O que me encanta de séries como essas que estamos falando e outra joia, ‘I May Destroy You’ [HBO], é que as dores e os amores das personagens doeriam em qualquer ser humano, mas por serem negras, existem ainda uma porção de novos e profundos significados. Não é sobre escrever personagens que só interessam a negros, tendo em vista que abordam temas universais, contudo, há momentos em que só a dororidade [termo criado por Vilma Piedade que se refere aos laços entre mulheres negras] alcança.”

Do texto à técnica

Além do roteiro, “Insecure”, de Issa Rae, foi muito aclamada pelo tratamento de fotografia, assinado por Ava Berkofsky —por exemplo, os tons azulados ressaltam a pele negra em cenas noturnas.

Mofeoli afirma que isso é reflexo de equipes majoritariamente negras. Todas essas produções são basicamente feitas por negros e são comandadas por mulheres.

“Não quero dizer que pessoas negras só devam trabalhar para pessoas negras ou em narrativas negras. Isso exclui de vez quem ainda não tem os meios de se manter no mercado. Não é sobre isso. Só que parece incabível que estejamos apartados de soluções criativas que nos contemplem”, diz Mofeoli.

Séries com protagonistas negras para ver:

  • “I May Destroy You”, na HBO Max
  • “Girls Trip”, no Prime Video
  • “Ela Quer Tudo”, na Netflix
  • “Living Single”, na Netflix
  • “Lovecraft Country”, HBO Max
  • “High Fidelity”, Paramount+

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