Heleieth inaugurou o feminismo contemporâneo no Brasil

Deixou-nos em 13.12.2010 um ícone do feminismo: Heleieth Saffioti (1934-2010), socióloga, autora de “A Mulher na Sociedade de Classes: Mito e Realidade” (1969), algo como a pedra inaugural do feminismo contemporâneo no Brasil. Não consegui ir ao seu enterro e lamentei que ela não realizou três desejos: acariciar o meu cavalo Taj Mahal, banhar-se na cachoeira de Lea Melo e conhecer minha neta Maria Clara.

Por: Fátima Oliveira

Tiete dela, eu a conheci na fundação da União Brasileira de Mulheres (UBM), em Salvador, em 1988, onde, numa fala memorável, ela, encarniçadamente, aprontou poucas e boas! Nem lembro direito. Ela era contra a licença- maternidade, de 120 dias. Prometo recuperar a historia com Ana Maria Rocha. Em 1994, nas preparatórias da IV Conferência Mundial sobre a Mulher (Beijing, 1995), ficamos amigas.

Morávamos em Sampa. Meu filho Arthur era pequeno e ela adorava seus “olhos de jabuticabas”. E o entupia de refrigerante: “Pode pedir, Arthur, estou pagando!” Eu raramente dava refrigerante pra minhas crianças. Ela achava um absurdo! Depois que voltei para Beagá (1995), quando ia a Sampa, ela fazia um lauto e refinado jantar em seu belíssimo apartamento na praça da República. Bebíamos Miolo Seleção até alta madrugada. Conversávamos muito por telefone e por e-mail.

Ela achava o máximo de coragem eu ter três filhas e dois filhos. Um dia, indagando pela meninada, respondi: “A Maria ainda mora no Rio; a Débora, em Porto Alegre; a Lívia e o Gabriel, em Imperatriz. Comigo, só o Arthur”. Gargalhando, retrucou: “Meniiiiiiiiina, você povoou o Brasil!” Em 5 de março de 2008, recebi um poema dela:

“(…) Nossa! Como somos iguais, irmã de ideias! Não foi preciso nascermos irmãs, nos tornamos irmãs!/ Quantas diferenças cultivadas no fértil terreno da igualdade!/ Que a humanidade entenda nossa proposta e irmane-se a nós:/ juntos, construiremos a sociedade igualitária, tornando possível maior felicidade para homens e mulheres,/ minando o campo do desencontro homem-mulher e procurando propiciar o encontro amoroso entre estes seres humanos./ Há que humanizar os seres humanos. Como sou sonhadora! Nesta idade,/ pensando que ainda tenho fôlego para essa gigantesca empreitada./ Dividamos o trabalho:/ Você, que é mais jovem, responsabiliza-se por 99% da tarefa. / Eu, já passada em anos, tentarei dar conta dos 1% restante./ De acordo?” [íntegra: www.limacoelho.jor.br/vitrine/ler.php?id=4550 (“Minha querida irmã Fátima”: Heleieth Iara Bongiovani Saffioti)].

Numa viagem a João Pessoa (13º Encontro Nacional Feminista, 2000), em São Paulo, ela arrumou tanta confusão no avião que conseguiu sentar ao lado da “feministinha”. Era Lívia, minha filha! E danou-se a mandar que ela pedisse vinho, vinho e mais vinho! Para quem? “Quer um travesseirinho e um cobertor da Varig?” “Ah, querer eu quero, mas a gente não pode levar!” E ela toda arteira: “Não conte pra sua mãe!” E, zap!, na frente da aeromoça, colocou numa bolsa um travesseiro e um cobertor: “Ah, já sou velha, posso levar. Ninguém vai me mandar abrir a bolsa!”.

Desfazíamos as malas no quarto do hotel quando ela bateu à porta. Os “presentes” da Lívia, em cima da cama. E, quando ela pousou os olhos neles, eu disse: “Mas Heleieth…”. “Não tenho nada a ver com isso que você está pensando. A Lívia está de prova que eu os guardei na frente da aeromoça. Como ela não disse nada, até riu, nós trouxemos, não foi Lívia? Espero que tenha dito a verdade para sua mãe!”. Era pra rir. E rimos tanto que fomos às lágrimas.

Fonte: O Tempo

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