Helena Theodoro foi uma intelectual pioneira em promover diversas reflexões

Pensadora negra foi uma verdadeira dádiva para o coletivo, como uma fresta que se abre dentro de uma caverna escura

Há alguns meses, publiquei uma série sobre orixás nesta coluna. Com muita alegria, a recepção aos textos foi muito boa, muitas pessoas me escreveram, outras disseram que aprenderam bastante. Considero importante, como adepta e estudiosa do candomblé, refletir a partir de outros modos de mundo e significados.

No entanto, é importante ressaltar que isso não é novo. Uma autora que nos ensina muito sobre isso, pioneira em nos oferecer reflexões nessa área, é a professora Helena Theodoro.

Intelectual internacionalmente respeitada, foi a primeira mulher negra a conquistar um doutorado em filosofia no Brasil, em 1985. Em entrevista para o site da Anpof (Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia), Theodoro discutiu esse marco histórico.

“Escrever minha tese de doutorado sobre um terreiro de candomblé e o pensamento da escola idealista alemã de Max Scheler foi o resultado do conhecimento que aprendi em casa, dos valores civilizatórios africanos e de como a Europa utilizou nossa tecnologia para enriquecer e se destacar no mundo, já que trouxemos as tecnologias do ouro, das pedras preciosas, do algodão, couro, cobre, arroz et cetera, além das especiarias para a América do Sul, principalmente o Brasil. O pensamento africano construiu nossas casas, comidas e costumes, projetando nossa maneira de viver para o mundo e fazendo do Rio de Janeiro o principal centro de referência do Carnaval, com nossas escolas de samba, blocos e afoxés”, ela afirmou.

Theodoro é autora de vários livros que transitam entre gêneros distintos, como “Iansã: Rainha dos Ventos e da Tempestade”, publicado na Coleção Orixás, da editora Pallas, e a biografia “Martinho da Vila: Reflexos no Espelho”, publicada pela mesma editora. É uma das principais intelectuais brasileiras a empreender a ponte entre filosofia, religiosidade afro-brasileira e cultura popular.

O pioneirismo atravessa sua trajetória em muitas frentes. Na comunicação, foi colunista da Rádio MEC, de impressos e eventos televisionados. No teatro, escreveu a trilogia “Matriarcas”, com as peças “Mãe de Santo”, “Mãe Baiana” e “Mãe Preta”, que já circularam por diversas instituições.

Na entrevista concedida para a revista Amarello, pude conhecer mais de sua história pessoal e familiar. Filha de militantes negros, o economista Jurandir Theodoro e a intérprete Lea de Araújo Theodoro, a autora cresceu em um espaço que compreendia a educação como instrumento de libertação.

Seus pais tinham condições materiais e consciência política —e transmitiram ambas as coisas como herança. Ela estudou piano, balé, francês. Frequentou rodas de samba, teatros, e conviveu com os mais velhos e os saberes africanos. Sempre foi uma excelente aluna em todo lugar.

Uma mensagem que precisa ficar muito forte para os jovens, sobretudo para aqueles e aquelas que experienciam discriminações, é que a educação e o estudo possibilitam caminhos e mudam vidas. E a pessoas brilhantes, como Theodoro, esses caminhos se transformam em dádivas que não são individuais, mas funcionam para toda uma coletividade. É como uma fresta que se abre numa caverna, ou como os primeiros ventos que chegam do leste.

Num campo filosófico brasileiro, hegemonicamente masculino, branco e eurocentrado, somente alguém com tamanha genialidade, coragem e bênção ancestral poderia defender uma tese em que compara a filosofia de um terreiro nagô —o que, por si só, já é uma proposição um tanto libertadora para o povo tão silenciado ao longo da história, quanto escandalosa ao episteme judaico-cristão que fundamentou essa exclusão— ao pensamento de uma pessoa com filiação à escola idealista alemã.

Como mulher negra, mãe e graduanda em filosofia na Universidade Federal de São Paulo, não tive a oportunidade de ser sua aluna. Mas conhecê-la fora dos limites do bairrismo acadêmico foi um presente. Virei leitora entusiasmada de sua obra e presença.

No desfile deste ano da Portela, quando o carro com Milton Nascimento —homem de Oxalá, homenageado do enredo— entrou na avenida, eu estava lá sobre o carro, na lateral direita, com outros convidados. E a primeira pessoa que vi na avenida foi Theodoro, na cabine de imprensa. Reverenciei-a a distância. Ali também, com todos os significados que nos unem —Oxalá, o Carnaval, a entrada, a primeira pessoa, Exu—, senti que nossos caminhos haviam se cruzado.

O que nasceu ali se transformou nesta homenagem para abrir julho, mês tão importante politicamente para as mulheres negras. Que todas nós possamos aprender com Helena Theodoro a sermos ventania —com pensamento, com coragem, com axé. Sua bênção. Obrigada por tanto.

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