Heliópolis a partir das 22hs

A loucura… A efervescência, uma cidade dentro de uma cidade. Segundo dados oficiais, mais de 400 mil moradores. Seus moradores contestam e já dizem que são meio milhão. E o “passeio” com um, jovem, amigo só me fez conhecer talvez 1/10 da cidade.

Por Wallace Nunes, jornalista enviado para o Portal Geledés

Nas palavras dele, um “rolê” de duas horas e meia. No primeiro olhar por Heliópolis ruas e vielas asfaltadas, água encanada e esgoto tratado. O relevo do que agora entendi ser uma comunidade e, obviamente, difere de uma favela, se mostra um mix de casas – todas de alvenaria, semiacabadas ou acabadas. Multicoloridas com gosto para tudo.

Nelas, os portões são de todos os tipos, pequenos, médios e grandes, mas a maioria automática. No simples apertar de botão, ao estilo do patrão, abre-se a visão. Também há paredes de concreto que fazem as vezes de portões. Mas no geral, nada de coisa feia.

Numa das cinco casas visitadas, a entrada é pela cozinha, toda azulejada. São pisos frios que imitam o famoso porcelanato ou também laminado. Os móveis são de cozinha montada. Daquelas de que se vendem nas lojas de departamento populares (Casas Bahia/lojas Marabrás), mas já muito parecida com as pré-fabricadas pelas marcas famosas do ramo. A arrumação é gritante. Todas muito bem limpas e cheirosas. Absolutamente nada de sujeira.

Geladeiras, fogões, microondas de última geração, numa havia um refrigerador duplex, daqueles que custam bem caro nas lojas de departamentos. Na sala, a TV de tela grande e o “rome tchicher” se juntam aos quadros, fotos da família e gravuras de todos os tipos. É comum o grafiato. Nas palavras do dono da casa: “Dá um fundo melhor e mais agradável.” Engana-se quem pensa que o(s) proprietário(s) é/são envolvido(s) com o tráfico e, por isso, têm as casas boas. Trabalhadores em sua maioria. A grande maioria. Adultos e hoje a média de idade não ultrapassa os 42 anos.

De volta para rua… A casa de dentro se reflete nos automóveis. Todos os tipos, todas as marcas e diversos modelos, e a idade deles não ultrapassa os cinco anos de uso. No olhar de expectador dá para ver dezenas, muitos 1.0. Mas também os chamados sedãs médios e até SUVs. Motocicletas sim, aos montes, quer dizer, aos milhares. Hondas e Yamahas, Dafras ou sei lá mais o que. Todas encostadas nas portas/portões das casas. Travadas com alarmes ligados.

Dentro da cidade há também lojas de todos os tipos. Minimercados, lotéricas, as que vendem móveis, de vestuário, salões de beleza unissex, academias de ginástica, despachantes e agências de viagens que, às 23 horas continuavam abertas e, diferentemente das centrais estavam lotadas, ao menos em duas delas.

A vida noturna em Heliópolis é agitada. Dezenas de bares e restaurantes. Biombos pequenos, médios ou grandes, é possível escolher. Na porta, os possantes com aparelhagem pronta para tocar o funk carioca, o forró e o brega, mas também o rap e o charme. Homens e mulheres muito jovens que se reúnem sem hora para acabar falam num mix de sotaque nordestino com gíria paulistana. “Só vai pra cama quem trabalha no outro dia”, diz uma mulher aparentando uns 50 e poucos anos de idade revoltada com o som nas alturas e preocupada com o rolezinho da filha que não havia voltado.

A vestimenta é padrão. Mulheres de shorts – extremamente curtos com blusas decotadas mostram seus corpos esculturais. É o estereótipo da TV de massa nas ruas de Heliópolis… A conversa, pega de relance, é de futilidades. Manutenção do corpo, corpo a mostra, fulano bonito, beltrano gato, ciclano de carro novo e etc. Os homens vestem calça jeans, tênis das marcas Nike ou Adidas, camiseta de times de futebol da comunidade, da Europa e do Nordeste. Em sua maioria do Sport, do Náutico e do Bahia.

“Iaê, suave? Firmeza? Di boa?” São os cumprimentos. Palavras comuns no vocabulário destes jovens que se juntam em grupos ou em tribos. Também tem os manos. Em geral respeitam quem mora dentro da comunidade, mas pouco se misturam. Também tem as mães de famílias – chamadas de coroas e “véinhos”, alusão às pessoas com mais de 40 anos.

Cigarros, energéticos, bebidas alcoólicas e maconha, muita maconha. Nas mãos de todos. Até quem não fuma fica louco com a famosa “tabela”. Um cigarro de erva atrás do outro. O motivo para tanto é a baixa qualidade. “Mano, o baguio é fraquinho, se tá ligado? É 2 pra 1, é suave truta.”

A etnia em Heliópolis reflete o que é o Brasil. Muitos brancos, uma maioria de mamelucos, muitos mulatos e, ao menos na parte visitada, uma minoria de negros. Como era de se esperar, há discriminação na comunidade. Os negros moram nos locais de pouco acesso, mais afastados e recorrentemente precisam de ajuda – seja financeira, assistencial, de saúde ou espiritual. Que se faça justiça, muitos querem sair da situação onde estão; outros vivem do famoso “coitadísmo”. Alguns são bastante engajados politica e socialmente. Mas sofrem no cotidiano, pois são considerados radicais demais.

O pessoal do tráfico, claro, também está presente. E há diversos grupos neste meio. Os comerciantes, com suas “lojas” com todos os produtos ilícitos (cocaína, maconha, haxixe, lança-perfume e crack), os seguranças, os aviões e os olheiros. A maioria jovem. O consumo é diversificado. No entanto, se destacam o lança-perfume e o crack. A pedra, que no passado era vendida em regiões mais afastadas da favela, hoje é de fácil acesso. Todos que podem, compram. “Os nóias estão presentes em todos os lugares”, diz o amigo.

Além do tráfico há os jovens e homens de outros segmentos do crime. Ladrões, assaltantes, homicidas sequestradores, gente que não têm nada a perder. Saem para o crime, muitas vezes para matar ou serem mortos. Geralmente na região da Zona Sul ou do ABC. São os revoltados. Segundo eles, não têm alternativa. Como têm baixa escolaridade, o tráfico é a opção, mas o crime é a adrenalina que precisa ser gasta. Num grupo visitado, o assunto principal – em meio a vários cigarros de maconha era a finalização, morte com tiro na cabeça de uma pessoa, que havia reagido ao assalto.

Foi na noite anterior na região do ABC. O jovem autor do crime estava sendo caçado pela Força Tática, o grupo quase de elite da PM, que muitos da comunidade chamam de ignorantes…

heliopolis

A educação na comunidade deixa a desejar, segundo relato dos moradores. Pais e mães são unânimes em afirmar que o Poder Público trata com descaso todos os querem uma vida melhor a partir dos estudos. “A escola é ruim. Os professores nada querem, pois têm medo de apanharem. Não há uma educação inclusiva, muito menos psicológica. Não há materiais e os computadores vistos em outras escolas, sequer chegam aos locais de ensino da comunidade.”

“As ONGs presentes em Heliópolis fazem o que podem, mas não faz muito não. Sempre tem alguém querendo levar algum nessa história”, acusa um morador.

Ele cita uma organização que possui uma orquestra sinfônica dentro de Heliópolis. “Eles só escolhem os branquinhos – que nem são daqui – para aparecer na televisão. Não há uma ajuda assistencial de fato. Há muita conversa”, diz sem mostrar provas.

Na comunidade há poucos locais de diversão, para crianças e jovens, sobretudo. Nas costas do hospital, havia um parque de diversões montado dentro do principal campo de futebol da cidade desde outubro de 2015. Valor da entrada R$ 4. Como o parque iria deixar a cidade no final do mês de janeiro, a promoção R$1 se fazia valer. Ainda sim, poucos visitantes.

O campo de futebol é de terra batida. Talentos que lá surgem ou que podem surgir sofrem. Um político/morador da comunidade recebeu a verba da prefeitura para gramar o campo, mas nada fez. “Nossa, mano, os morador tá querendo ripá (matar) esse maluco. É um F.D. P do PT que não fez nada… Só toma dinheiro. “O filho deste demônio anda de I30 (modelo esportivo da Hyundai) pagando de gatinho e a comunidade sem nada”, diz outro morador revoltado.

Heliópolis é uma máquina de dinheiro, tanto para pessoas de bem quanto para o mal. Policiais, apenas duas viaturas na parte de cima da comunidade. Deu para contar seis homens. Dois com armas de grosso calibre em riste e, o restante com talões de multas nas mãos. Sem dó, aplicavam multas a todo momento. Quando havia uma tentativa de troca de ideia, a certeza era de que algum dinheiro precisava ser dado aos PMs para “aliviar”.

Políticos levam xingos a todo momento. O campeão é o governador… Leva a culpa por ter tirado a verba da escola, por não ter creche, pelo ambulatório estar lotado, por não haver remédios e etc… O prefeito criador da ciclofaixa também é xingado “Mano, pra que essa faixa vermelha? Para chamar o demônio? Só pode ser…”.

Heliópolis é de fato uma cidade dentro da cidade.

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