Com 24 artigos, obra analisa como movimento virou tsunami ao se apropriar do ambiente virtual
por Helena Aragão no O Globo
Na década de 1980, quando Heloisa Buarque de Hollanda entrevistava mulheres artistas para suas pesquisas, costumava constatar duas coisas: seus trabalhos tinham forte conteúdo político de defesa dos direitos femininos, mas elas se recusavam a se definir como feministas. Corta para os anos 2010 e… parece que o jogo virou. As criações de cineastas, poetas, compositoras e atrizes seguem engajadas, mas feminismo definitivamente deixou de ser uma palavra maldita. O que, afinal, aconteceu? Esta foi uma das perguntas que motivaram a escritora e pesquisadora a produzir o livro “Explosão feminista”, recém-lançado pela Companhia das Letras.
A obra traz 24 artigos a respeito de diversas vertentes do movimento. Alguns, sobre artes, internet e política, são escritos por Heloisa em companhia de pesquisadoras, como a professora de Comunicação Cristiane Costa e a roteirista Antonia Pellegrino, e jovens ativistas, como a acadêmica Maria Bogado. Outros são assinados por especialistas em segmentos, como o feminismo negro, o asiático, o protestante e o lésbico. E há ainda depoimentos de veteranas, como Sueli Carneiro e Jacqueline Pitanguy.
Juntas, e embaladas pela força da internet, estas (e muitas outras) mulheres representam a “quarta onda” do feminismo. No Brasil, as manifestações de 2013 marcaram esta nova etapa. Mas, para Heloisa, foi em 2015, com a reação contra o projeto de lei do deputado Eduardo Cunha para dificultar o aborto legal em caso de estupro, que a marola virou quase tsunami.
Nesta entrevista, Heloisa comenta as dores e delícias de voltar a mergulhar neste tema — se houve trocas interessantíssimas com jovens militantes, a autora se viu também no meio de um fogo cruzado do debate entre militantes do feminismo radical e as transexuais.
Até poucos anos atrás, “feminista” não era uma palavra natural na boca das brasileiras. Em 2013, ela ganhou nova força. O que aconteceu?
Boa parte dessas meninas (que assinam os artigos do livro) não se dizia feminista antes do período 2013/2015. Isso tem só três, quatro anos! O livro se propõe a olhar este passado próximo e entendê-lo. Ali, as pessoas foram às ruas por uma explosão de demandas básicas, como educação, saúde e segurança. Hoje, a gente olha para trás e pensa: o conservadorismo levou a melhor! Mas o feminismo levou também. Foi o único movimento progressista que avançou significativamente a partir dali. Em comum entre todas as tribos de 2013, havia a frase “não quero intermediários”. E acho que essa ideia o feminismo absorveu bem.
Por quê?
Porque ele se apropriou do ambiente virtual com força. A internet mudou tudo! Houve hashtags incríveis, em campanhas que partiam do individual para o coletivo, como #nãoénão e, sobretudo, #primeiroassédio. Esta última inundou as redes em 2015 com relatos estarrecedores de mulheres de todas as idades sobre abusos sofridos. A (ONG) Think Olga, que lançou a campanha, depois fez um levantamento e descobriu que, num universo de 3 mil menções, a média de idade do primeiro assédio era 9,7 anos. A intenção ali não era de vingança individual, mas sim de performance narrativa pública. E fez efeito.
O efeito foi mostrar a força coletiva das mulheres?
Sim. Pesquisei muito nos últimos anos e não sei quem é a liderança hoje. As correntes feministas já existiam, mas mesmo nelas não há líderes claras.
Em determinado momento, você se coloca em um texto como “professora universitária, 79 anos, cisgênero”. É desconfortável estar nessa condição de privilégio ao lado de mulheres com tantas demandas?
Claro que é. Por isso quis deixar isso claro. Se você parar para pensar, faço parte do segmento branco de classe média alta, universitário. Pois bem, isso não representa nem metade das mulheres brancas! Então eu tinha duas opções: ou ficar quieta, ou viver no modo de tradução, para usar palavras da (feminista americana) Gloria Anzaldúa. Neste caso, tradução é uma palavra que funciona melhor do que empatia. Porque empatia envolve se colocar no lugar do outro. E eu não levei as porradas da vida que essas mulheres levaram. Mas acredito que sem diálogo não há política.
Os diferentes feminismos têm demandas afins?
É claro que há lutas comuns, mas fiquei impressionada como cada vertente tem sua demanda específica. A negra bate muito na tecla da violência. Sou feminista há muitos anos e lembro de ter visto pouco a questão da mulher negra ser pautada. Elas têm toda a razão de cobrar por visibilidade hoje em dia. Enquanto isso, a asiática reclama da fetichização, de sempre acharem que no Oriente todo mundo é gueixa. As lésbicas lutam por visibilidade, mesmo dentro do movimento LGBTI. As cristãs e as indígenas brigam por lugar de poder, para ser sacerdote e pajé. Já para as transexuais é demanda é legal, por direito a registro civil. E há também o feminismo radical, que não poderia deixar de estar no livro.
O artigo sobre feminismo radical, de Eloisa Samy, causou debates acalorados. As trans disseram ter sido ofendidas pelo texto (a corrente “não apoia a transgeneridade” e “se opõe à prostituição”, nas palavras usadas por Eloisa). Depois, a autora afirmou que não autorizou a publicação, e mulheres que tiveram seus nomes incluídos como colaboradoras disseram não terem sido consultadas.
A Eloisa representa perfeitamente esse feminismo radical. Ela tem um trabalho importante de defesa de mulheres que sofreram violência. Acontece que pegou pesado, pesou no vocabulário para se referir às prostitutas e às transexuais. As bandeiras são complexas, mas tinham que estar no livro, se não pareceria que vivemos na Disneylândia.Há conflito dentro do feminismo, é claro. Não concordo com coisas escritas ali, mas não achei que era o caso de mexer nos textos da segunda parte do livro, sobre as vertentes do feminismo. (A Companhia das Letras divulgou uma nota afirmando que obteve autorização para publicar todos os textos, e que alguns nomes de colaboradoras foram retirados da próxima tiragem.)
E como o feminismo está se colocando nas artes hoje?
Eu sabia que existia uma poesia feminista de protesto, mas não sabia que ela tinha qualidade. Há performances agressivas, mas que têm seu papel. Tudo que está no livro, para mim, é muito mais do que manifesto, é verdadeiramente arte. No capítulo de cinema, é muito interessante ver como diretoras de cinema experientes, como a Anna Muylaert e a Lais Bodanzky, contam como passaram a olhar suas carreiras em perspectiva sob a lente do feminismo depois de 2013. No artigo sobre música, MC Carol conta que só descobriu a palavra “feminismo” em 2015. Mas, claro, a obra dela já era feminista há muito tempo.
Estamos prestes a ver um presidente conservador governar o Brasil. O que vai acontecer com as feministas?
Minha tese de doutorado foi mostrar o que aconteceu na cultura depois da repressão da ditadura. Ali surgiu uma nova música popular, uma poesia marginal, uma outra forma de lutar. As artes sempre dão jeito de entrar em brechas. A única coisa que me preocupa é a possibilidade de retrocesso de direitos. Mas não entro em pânico. Há uma pauta conservadora porque o progressismo foi longe. Teve por acaso o (presidente eleito, Jair) Bolsonaro, mas teria outra coisa se não fosse ele. Andamos muito pra frente. O “não é não”, as poesias, as performances, tudo foi interpelação forte ao status quo. Dá vontade de viver para sempre para ver como vai ser daqui para a frente.