A história de Sofia: o cruel labirinto do estupro na favela

Ela sofreu abusos durante sua adolescência. Depois descobriu que sua filha de 12 anos sofria o mesmo

Por FELIPE BETIM, do El Pais 

Sofia* sofreu um baque quando descobriu há dois anos que a sua filha Laís*, então com 12, vinha sendo abusada sexualmente pelo padrasto desde os seis. Jamais desconfiou de seu então marido, mas imediatamente decidiu se separar e denunciar o caso para a polícia. Decisões difíceis, mas tomadas para dar à sua filha a proteção que ela nunca recebeu durante a sua infância. Quando também era criança, Sofia foi estuprada pela primeira vez. Também dentro de casa. “Perdi minha mãe com quatro anos, mas logo depois uma moça me pegou na rua para criar. Fui crescendo, até que aconteceu. Fui abusada na casa dessa moça pelo marido dela. Não tinha como ficar lá e voltei para a rua”, conta esta dona de casa, moradora de uma favela de Niterói, cidade vizinha da capital Rio de Janeiro.

Uma vez fora de casa, começou a usar drogas e a se prostituir para sustentar o vício. Para não morrer, sofreu calada vários estupros coletivos de traficantes que ocupam comunidades de Niterói. “As meninas caem muito fácil na conversa dos meninos. Querem se sentir mais importantes na favela, que as outras fiquem com inveja. Eu também era assim”, explica. “Mas eles eram muito violentos, forçavam a barra. A gente tinha que fazer. Se não fizesse, eles matavam”.

Hoje, com 33 anos, vive em uma casa própria com seus quatro filhos — dois deles de seu ex-marido violador. Sua história até aqui é a história de outras milhões de brasileiras que, como ela, sofreram abusos repetidas vezes tanto dentro como fora de casa, tanto por familiares como por estranhos — independente de sua origem ou classe social. O que muda no caso de Sofia e de outras mulheres que vivem nas periferias brasileiras é a forma como podem reagir a esses abusos. Elas têm de lidar com a violência de traficantes e milicianos que fazem e aplicam a lei nas comunidades, com a indiferença de autoridades policiais que na maioria das vezes constrangem e culpabilizam a vítima, e com a falta de amparo e de conhecimento de suas respectivas famílias — principalmente quando o agressor é um parente ou o próprio companheiro. Em suma, essas mulheres têm de percorrer um cruel labirinto em que, a cada saída, se deparam com perigosas armadilhas.

“Existe a questão de gênero para todas, mas na favela ela se mistura com a questão de classe e de etnia. São fatores que potencializam a violência. Na pirâmide social, a mulher negra, jovem e pobre é a mais vulnerável. O acesso à informação e serviços é mais precário. Então a maneira como está inserida na sociedade faz diferença na hora de lidar com a situação e até de ser atendida em uma delegacia”, explica a assistente social Erika Carvalho, coordenadora do Centro de Referência de Mulheres da Maré Carminha Rosa, no Rio de Janeiro. Em 2015, o Estado do Rio registrou 4.128 estupros, segundo os dados da Secretaria de Segurança divulgados nesta semana. A maioria das vítimas são menores de 14 anos. Já um estudo do IPEA realizado em 2014 estima que ocorrem cerca de 527.000 estupros por ano no Brasil, mas que apenas 10% são notificados à polícia. Além disso, cerca de 70% dos abusos são cometidos dentro de casa por parentes ou companheiros. “Por isso nosso trabalho é principalmente o de informar, orientar e conscientizar sobre seus direitos”, acrescenta Carvalho.

 

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