A história radical e empoderadora da primeira história em quadrinhos feminista feita por mulheres

Em 1954, a Comics Magazine Association of America criou o Code Authority of Comics, para regular e com frequência higienizar os quadrinhos independentes e mainstream. Representações de violência, sexo e drogas, assim como conteúdo socialmente progressivo, eram estritamente proibidos.

Por Priscilla Frank Do Brasil Post

Cerca de 1968, um movimento underground dos quadrinhos começou a borbulhar sob o reino dos quadrinhos absolutamente limpos, dominados por super-heróis e infelizes garotas secundárias.

O movimento, liderado por artistas como Robert Crumb, Jack Jackson e Gary Panter, escapou dos olhos cuidadosos do código dos quadrinhos pois eram vendidos em lojas que vendiam acessórios para maconha ao contrário das reguladas lojas de quadrinhos. Ao fazer isso, eles eram livres.

O que esta liberdade nova e sem precedentes significou para um grupo de talentosos e desafiadores rebeldes e também, estrondosamente, composta de artistas homens? Bem, entre outras coisas, resultou em um bocado de garotas desnudas de ficção passando por situações de degradação, humilhação, estupro, tortura e assassinato. E a parte mais horrivelmente frustrante?

Era tudo uma grande piada e qualquer mulher que desafiasse protestando não era inteligente ou descolada o suficiente para entender. Quando Gary Groth perguntou para Robert Crumb em 2014 como ele reconciliou sua hostilidade contra as mulheres — e de onde essa inimizade surgiu— Crumb respondeu: “Você já viu as mulheres recentemente? Brincadeirinha”.

Esse era o contexto irritante do mundo dos quadrinhos quando Trina Robbins decidiu que era demais. “Era tudo apresentado como se fosse engraçado”, explicou ao Huffington Post. “Eu contestava e eles diziam, ‘Ah, você não tem senso de humor’”.

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Robbins nasceu e foi criada no Queens, bairro de Nova York. Sua mãe, professora primária, ensinou Robbins a ler quando ela tinha 4, e imediatamente, Robbins foi fisgada. “Eu fui a criança que grudava a parte de trás das caixinhas de cereal”, riu. “É claro que isso significa que leio quadrinhos”.

Ao crescer, Robbins descreveu seu gosto como “qualquer coisa que tinha meninas ou mulheres como estrelas, exceto quando estamos todas amarradas e esperando um resgate dos namorados”. Ela seguiu o personagem Patsy Walker, que surgiu com o alter-ego Gata do Inferno, uma super-heroína conhecida pelas suas habilidades psíquicas e habilidades em artes marciais. E Millie the Model, a estrela modelesque da série de aventura romântica com senso de humor.

Mulher Maravilha e Mary Marvel, irmã do Capitão, eram suas favoritas também. “Mary era uma garota”, explicou Robbins, “que me mostrou que você não precisava ter que crescer para se transformar em uma super-heroína”.

Já adolescente, Robbins sonhava em ser artista — morando em Paris, usando boina, a coisa toda. Enquanto isso não acontecia, ela passava seu tempo livre vasculhando os corredores dos mais finos museus de Nova York.

“Nunca percebi que todas as pinturas eram de homens”. No entanto, com o passar do tempo, ela foi seduzida pela combinação maravilhosa de texto e imagens que somente os quadrinhos eram capazes de oferecer.

“Eu realmente tenho uma ligação forte com a para mim não há melhor forma de comunicação”, acrescentou.

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Robbins começou a se identificar como feminista no final dos anos 60, quando vivia um estilo de vida hippie no bairro nova-iorquino do Lower East Side. Ela tinha sido arrebatada para o mundo underground burguês do movimento comix, e apesar disso, sendo a única mulher em um clube inteiramente masculino, ela foi constantemente excluída e ignorada.

Um dia Robbins leu um artigo sobre a liberação das mulheres em um jornal underground e algo clicou. “Eu comecei a ver tudo a partir desse ponto de vista”, disse ela. “Eu percebi que eu estava sendo excluída dessas coisas por ser mulher”.

Especificamente, Robbins se lembrou quando Ed Sanders coordenou a primeira exibição de comix underground na própria livraria Peace Eye Bookstore “Ele incluiu todos os caras e eu fiquei de fora”, disse Robbins. Na época, ela estava fazendo quadrinhos psicodélicos que pegavam pesado no design e leve na narrativa.

Aubrey Beardsley, um ilustrador cujas imagens altamente estetizadas em preto e branco eram a lâmina visual da prosa de Oscar Wilde, foi uma das maiores influências para Robbins. “As pessoas diziam que você tem que estar drogada para entendê-las”, riu. “Não é bem verdade”.

Robbins logo se mudou para a Bay Area, na Califórnia, o que, graças ao Zap Comix, de Robert Crumb, foi um terreno utópico fértil para artistas do comix underground — salvo, é claro, por serem mulheres. Foi lá que ela descobriu o It Ain’t Me Babe, baseado em Berkeley, o primeiro jornal feminista no país.

Robbins começou a criar quadrinhos para o jornal, que frequentemente se centrava em torno da luta de Belinda Berkeley, uma “mulher como qualquer outra” que enfrentava desafios ao trabalhar em um péssimo escritório enquanto seu marido se esforçava em escrever uma maravilhosa novela americana.

Em julho de 1970, Robbins se uniu com Barbara “Willy” Mendes e criou a primeira história de quadrinhos feita só por mulheres, “It Ain’t Me Babe Comix.” Elas contrataram outras artistas locais como Nancy Kalish, Lisa Lyons, Meredith Kurtzman e Michele Brand. A história do livro destaca personagens femininos desse mundo: Olívia Palito, Little Luluzinha, Mulher Maravilha, Sheena, a Rainha das Selvas, Mary Marvel e Elsie the Cow saindo dos papéis prescritos e unindo-se ao movimento de liberação feminina.

As mulheres marchavam — e ocasionalmente se elevavam— juntas em protestos, com os punhos no ar, negando-se a brincarem de donzela ou fazer papel de ajudante.

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Através de descrições gráficas de super-heroínas sem pudor, Robbins criou uma fantástica válvula de escape e expressava suas reais frustrações como mulher em uma cultura patriarcal. “Comecei a ver que as mulheres eram deixadas de lado”, disse.

“Como as mulheres eram vistas como inferiores aos homens. Como as mulheres eram estereotipadas de todas as formas. Como elas ficavam presas ao trabalho doméstico e as responsabilidades com os filhos, enquanto o homem relaxava bebendo. E era esperado que tudo fosse assim”.

Sua experiência ao colaborar no It Ain’t Me Babe ofereceu a Robbins um sistema de apoio que há muito lhe havia sido negada, como mulher em um clube de homens.

“De repente me senti mais forte porque não estava mais sozinha”, explicou. “É tão difícil lutar por algo quando você se sente sozinha”. Dois anos depois desse quadrinho de Robbins, feito só por mulheres, sua editora se aproximou dela dizendo que estava pronto para mais. Robbins se uniu com outras nove cartunistas mulheres na casa da artista Patricia Moodian, em San Francisco, e planejou seu próximo passo.

Antes do esperado, Wimmen’s Comix nasceu. “Eu esperava que fosse o melhor quadrinho já produzido em todo o universo”, disse Robbins. “Provavelmente não era, mas foi muito, muito bom mesmo”.

O quadrinho foi gerenciado de forma coletiva, com duas coeditoras se alternando e trabalhando juntas em cada edição, então o poder era distribuído de maneira uniforme. Já que havia tão poucas mulheres na arte dos quadrinhos na época, o coletivo Wimmen’s Comix incentivava novas artistas a se envolverem, publicando o trabalho de artistas que nunca tinham trabalhado no meio antes.

“Muitas mulheres que enviavam o material para nós nunca tinham desenhado um quadrinho antes e era evidente”, explicou Robbins na apresentação do The Complete Wimmen’s Comix, publicado em 2015.

“Mas nós estávamos mais interessadas em dar às mulheres uma voz do que em como elas poderiam usar o lápis e a tinta profissionalmente”. Algumas das imagens iniciais eram brutas ou toscas, mas, com o tempo, a curva de aprendizado era bem acentuada e as artistas melhoraram rapidamente.

Todas as contribuições do Wimmen’s Comix são contadas desde uma perspectiva feminista, embora as interpretações da palavra “feminista” variem grandemente. Em “Teenage Abortion” de Lora Fountain um cara engravida uma garota e com um “desculpe mina” e um “como sei que o bebê é meu?”, e fica fora da história.

A menina acaba parando em uma clínica ilegal de aborto onde ela recebe gin para acalmar a dor. O “Weight Watchers” do Terre Richards acompanha Dolly Divine e Lottie Lavinski quando tentam emagrecer antes de suas férias no México, e as outras exploram a Caça às Bruxas.

E My Kitty Loves To Do The ChaChaCha de Melinda Gebby persegue um gato de casa que passa a primeira noite na rua, onde ela se dá bem com um bulldog, cão pastor e um gatinho preto. “Éssim que a ‘gatinha’ se sente?” o cão pastor pergunta, ao que o gatinho responde: “Ah vá, droga! Estilo cachorrinho!”

E mais: Victoria the Woodhull de Michele Brand e Mary Skrenes foram baseadas na primeira candidata presidencial, uma sufragista do século 19, anarquista e amante livre. Dot Bucher criou uma ode em quadrinho para Harriet Tubman.

Em Reactionary Comics de Margery Peters, John Smith pega uma Pocahontas de 12 anos, ao que ela responde, “Você é apenas um velho misógino procurando por uma nativa para transar!” Há história e fantasia, masturbação e menstruação, trabalho e sexo, comida e drogas, bruxas e lésbicas, super-heroínas e feministas.

O Wimmens Comix durou 17 edições. Durante a publicação, Robbins somente recebeu uma única mensagem de ódio pelo correio: uma carta bizarra, escrita à mão, acusando o FBI de ser quadrinho de mulher para minimizar o movimento feminino. Tinha a assinatura de Falecida, Labyris (revista feminista) e Sparkling Star. Robbins adorou.

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A edição final de Wimmen’s Comix ocorreu em 1992. O final tinha menos a ver com a publicação em si, que estava melhorando constantemente em qualidade, e mais com a distribuição. Os primeiros lugares que estocavam os quadrinhos eram as lojas de acessórios de maconha e livrarias de mulheres, os dois espaços em extinção.

“Não havia lugar para que nós fossemos encontradas exceto nas livrarias que vedem histórias em quadrinhos, frequentadas por garotos de 12 anos e homens de 30 que eram internamente meninos de 12 anos”, disse Robbins.

Nas poucas livrarias de gibis, o estoque de Wimmen’s Comix vendia rápido. Quando os consumidores perguntavam se era possível conseguir mais, a resposta era sempre: “As mulheres não leem quadrinhos”.

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A falta de lógica aqui, para Robbins e sua equipe, era de enlouquecer. “O dominante era totalmente denso”, suspirou Robbins. “O que eles queriam dizem com ‘as mulheres não leem quadrinhos’ é que as mulheres não leem quadrinhos de homens com pescoços duros, grandes queixos e enormes músculos dando socos”.

Hoje, Robbins diz com alegria que até o mais durão vendedor de gibi que existe por aí ousaria dizer que as mulheres não leem ou criam quadrinhos. “Há mais mulheres desenhando quadrinhos agora do que jamais visto”, disse Robbins. “Não só desenho em quadrinhos, mas revistas e romances gráficos também — a grande maioria feito por mulheres! Tudo mudou enormemente”.

O website Graphic Policy publica uma visão mensal da situação demográfica dos amantes de quadrinhos nos Estados Unidos, baseado no Facebook. Vasculhando os usuários do Facebook nos Estados Unidos, a Graphic Policy conta as “curtidas” no perfil das editoras de quadrinhos, romances gráficos ou quadrinhos específicos. No dia primeiro de junho de 2016, havia aproximadamente 42.000.000 fãs de quadrinhos, 45,24 por cento mulheres.

Quando era criança, Robbins amava os gibis por causa da sensação de possibilidade infinitas que eles inspiravam. “Eles me faziam sentir como se pudesse ser a heroína dos quadrinhos, como se pudesse ser qualquer coisa”, relembrou Robbins.

Se não fosse pelo fogo de Gata do Inferno, o humor desajeitado de Millie the Model ou o valor da Mulher Maravilha, Robbins nunca teria a audácia para pensar que ela, a única feminista no mundo dos quadrinhos, poderia começar uma revolução, fazendo com que um dia o campo fosse mais equilibrado para as artistas mulheres e leitoras ávidas.

A próxima geração de jovens criativas pode nunca nem saber sobre a puberdade, gravidez, sereias e desenhos aperitivos em preto e branco como algo delicioso da mesma forma que são nojentos, sem poupar qualquer detalhe sujo. As meninas podem ainda estar limitadas a lerem os contos formulados dos caras que salvam as minas silenciosas várias vezes.
Afortunadamente para todas nós, Robbins aprendeu das melhores super-heroínas no jogo e anotou tudo.

O Wimmen’s Comix completo está agora disponível no Fantagraphics Books. Veja algumas das obras mais inovadoras abaixo.

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