Homens cantam ‘lacração’ e esquentam debate sobre letras feministas e ‘lugar de fala’ na música

Letras com tom de empoderamento têm sido criadas e cantadas por eles; sertanejo diz que ‘estilo está em alta’. Para pesquisadora, é preciso ir além do lacre.

Por Carol Prado, G1

Já que empoderamento se tornou palavra de ordem na música pop, alguns homens decidiram que também querem lacrar. Letras que arriscam tom feminista têm sido criadas e cantadas também por eles.

“Esse estilo está em alta no mercado”, diz ao G1 Mariano, da dupla com Munhoz. Os dois lançaram em novembro “Mulherão da porra”, um funknejo com bordão em alta no vocabulário do tombamento. A letra fala sobre uma garota mais interessada na balada do que num relacionamento sério. Ele explica:

“Temos que enfiar na cabeça das pessoas que mulherão da porra não é só a siliconada, que vai para a academia. É a mulher guerreira.”

A dupla Munhoz e Mariano (Foto: Equipe MW Produções/Divulgação)

As bandas Oriente (“Linda, louca e mimada”), Apanhador Só (“Linda, louca e livre”) e Psirico (“Mulher no poder”), entre outras, também já surfaram no movimento. Para Mariano, “não há contradição” em homens transmitindo esse tipo de mensagem.

‘Lugar de fala’

É também o que pensa Iza, cantora carioca que despontou neste ano com repertório engajado na causa feminina. “Mas há uma preocupação com o lugar de fala”, pondera, usando a expressão que se tornou recorrente em debates nas redes sociais em 2017.

Trata-se do “direito” que alguém tem de falar sobre determinado tema por manter com ele algum tipo de identificação. “É muito importante que se dê um assento à mesa para as pessoas que realmente podem falar sobre o assunto”, diz a artista. Ela acrescenta:

“Mas não é um problema um homem falar [sobre feminismo]. Existe meu lugar de fala da mulher negra, da periferia. Quando um homem branco chama a atenção para esse tipo de assunto, isso só nos ajuda.”

A cantora IZA (Foto: Divulgação)

Iza lançou “Quem sabe sou eu”, que celebra o domínio feminino sobre o próprio corpo. A letra foi escrita por um time masculino: Gabriel Moura, Leandro Fab, Pretinho da Serrinha e Rogê.

“O lugar dos homens no feminismo é controverso”, diz Tatiane Leal, pesquisadora da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) com trabalhos sobre a relação entre feminismo e música pop. Para ela, o movimento precisa também falar com eles.

“Mas, quando um homem canta uma música com esse tema, pode não ser bem recebido nesse espaço”, afirma. “No entanto, [essas canções] também podem ter uma visão diferente sobre a mulher. Todos esses produtos têm nuances, tudo depende de como eles são ressignificados”, conclui.

“Quando um homem compõe sobre empoderamento feminino, é a partir do ponto de vista de quem observa e ‘traduz’ a mulher. Quando uma mulher compõe, é sobre experiência de vida”, opina Kell Smith, que se tornou fenômeno com a balada motivacional “Era uma vez”. Mas ela já lançou “Respeita as mina”, com letra para uma amiga, que sofreu violência doméstica.

Causa que vende

Nas vozes de homens e mulheres, hinos de autoestima como os de Iza e Kell ganharam mais visibilidade no ano passado, quando o debate sobre empoderamento esquentou na internet.

Para Eduardo Pepato, produtor conhecido do sertanejo que esteve por trás de hits de Marília Mendonça e Maiara e Maraísa, o movimento ganhou força a partir da explosão do feminejo – os “modões” cantados por mulheres, que marcaram a música pop em 2016.

Marília Mendonça no palco do Festival de Verão de Salvador (Foto: André Carvalho/Ag Haack)

“Isso puxou outras coisas. E mudou muito o mercado em relação a shows, ajudou a inclui-las. Hoje toda grade tem pelo menos uma artista”, avalia.

“Antes, as mulheres iam aos shows por causa das músicas das duplas. Hoje, esses eventos são também um lugar de encontro delas. E onde vai a mulher vai o homem.”

A visão estratégica de alguns artistas e produtores ajudou a popularizar o discurso, acrescenta Iza. “Como foi com a sustentabilidade – teve uma época em que todo o mundo, todas as empresas eram sustentáveis -, acho que muitas pessoas acabam se aproveitando desse momento.”

Apesar disso, a cantora vê com bons olhos a popularização do assunto na música, independentemente de quem ocupa o tal lugar de fala. “Talvez a sociedade esteja exercitando mais a empatia”, avalia.

“Cabe a nós, que estamos dentro do movimento, observar e abraçar todas as oportunidades de estarmos presentes, falando sobre o tema. Ainda há bastante o que discutir.”

Para a pesquisadora da UFRJ, há riscos na “comercialização” da causa.

“O feminismo visa transformações sociais. Se o objetivo do discurso é o lucro, ele não promove essa transformação. Essas músicas não são feministas em si mesmas, tudo depende das apropriações que cada pessoa faz.”

Para cumprir seu verdadeiro propósito, o movimento precisa “transcender o aspecto individual”, afirma Tatiane. Ou seja: “Tem que ir além da lacração e da troca de likes”.

Polêmicas do lacre

Falando em lacração, Claudia Leitte lançou em dezembro sua “Lacradora”, composta por dois homens, os baianos Tierry Coringa e Topera. Antes de sair, a música já causou polêmica ao ser associada a uma crítica feita por Pitty a letras que falam de feminismo, mas estimulam a competição entre mulheres.

Os versos citam “lacre”, “fechação” e “look bafo”, mas também “recalcadas” e “inimigas no chão”. Pitty apagou o comentário do Twitter e disse não ter se referido a uma canção específica.

Capa do single ‘Lacradora’, de Claudia Leitte e Maiara & Maraisa (Foto: Divulgação)

Tierry, um dos compositores, conta que escreveu “Lacradora” pensando no público gay, mas para falar de “amor próprio” a “mulheres que se acham inferiores por não estarem no padrão que a sociedade impõe”. Ele rejeita as críticas:

“Não consigo entender a sociedade. Vejo gente reclamando de homem que maltrata as mulheres. Quando a gente faz uma música que exalta as mulheres, reclamam também.”

Um lema feminista na voz de um homem também gerou debate na internet em agosto, quando a banda Apanhador Só anunciou a suspensão das atividades após o guitarrista Felipe Zancanaro ser acusado de agressão por uma ex-namorada.

A apresentadora Clara Corleone publicou no Facebook um longo relato sobre seu relacionamento com o músico, e disse ter decidido tornar o caso público depois do lançamento de “Linda, louca e livre”, música do grupo que usa um emblema da causa.

Zancanaro publicou um pedido de desculpas à ex-namorada e admitiu ter errado. “À Clara, por tudo que lhe causou sofrimento e mágoa, peço desculpas, assim como a todas as pessoas que decepcionei”.

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