Nesta semana, a escritora Juliana Monteiro postou em suas redes sociais um trecho de uma conversa com um homem sobre o aborto.
Reproduzo aqui:
– Se liberar o aborto, vai virar festa. As mulheres vão abortar como se fossem arrancar um dente.
– Você já arrancou um dente?
– Não.
– Por quê? É liberado! É só ir no dentista e você pode arrancar quantos dentes quiser. É uma festa!
– Não é a mesma coisa.
– Quem comparou foi você.
– Mas ninguém arrancaria um dente à toa.
– Ninguém faria um aborto à toa.
– A gente só arranca um dente quando não tem outro jeito.
– A gente só interrompe uma gravidez quando não tem outro jeito.
– Mas eu nunca precisei arrancar um dente porque me cuido.
– Me cuidar não é suficiente para evitar um estupro, por exemplo. Para que não seja necessário um aborto, é preciso que os homens não cometam crimes. E se responsabilizem pelas gestações que podem provocar. Vocês têm responsabilidade por 100% dos abortos.
– Mas não somos nós que engravidamos.
-Justamente.
Ao final, ela fazia uma convocação:
Nada é mais parecido com um machista de direita quanto um machista de esquerda. Por isso, homens bacanudos, se posicionem.
Horas depois de ler a postagem de Juliana Monteiro, numa entrevista com uma especialista internacional, o tom usado por ela foi o mesmo: o machismo de esquerda é tão perverso quanto o de direita.
Sim, a existência de um projeto que equipara a vítima de um estupro ao violador, caso ela opte pelo aborto, nos obriga a assumir uma postura clara.
De fato, o aborto foi sempre um tema dos homens, neste caso legislando sobre o corpo da mulher e politizando seu útero. Passou já da hora de nos posicionar de uma maneira radicalmente diferente. Ou qualquer de nossas falas e discursos pseudofeministas não passarão de hipocrisia.
Estudos e casos empíricos em diversos lugares do mundo mostram que, quando há o envolvimento dos homens, os avanços nos direitos de qualquer outro grupo podem ser decisivos. Não se trata de uma concessão. São direitos que considero como inalienáveis.
Na Irlanda, em 2018, a votação para legalizar o aborto foi considerado, por vários motivos, como histórico num país com forte tradição católica. Um deles foi o amplo engajamento dos homens, inclusive com campanhas Men For Yes (Homens pelo Sim). O resultado foi uma vitória esmagadora da proposta de legalização, com 66% dos eleitores defendendo o direito à escolha da mulher. Dois terços dos homens votaram pela proposta.
Sim, são as mulheres que carregam bebês em seus ventres, que precisam de aborto e que sofrem – inclusive morrem – quando esse direito não existe.
Mas, em pleno século 21 em muitos países, são homens ainda que decidem o destino das mulheres. No estado de Missouri, 21 dos 24 senadores que votaram por restringir os direitos de mulheres a buscar um aborto eram homens. Na Georgia, dos 34 senadores, 33 eram homens.
Aqui na ONU, sempre que há um debate sobre resoluções sobre o direitos das mulheres, fico constrangido de ver uma sala repleta de homens decidindo se uma mulher tem de fato direito ao seu corpo. De forma irônica, vou até os negociadores de alguns dos países mais radicais e pergunto: onde fica a sala na qual se debate o controle do corpo masculino?
Há ainda um aspecto de comunicação. Lamentável, mas real. Para uma porção significativa dos homens, há uma diferença quando a mensagem é dada por uma mulher ou por outro homem. Num levantamento, os cientistas políticos Tarah Williams e Paul Testa concluíram que muitos homens são persuadidos por uma mensagem sobre os direitos das mulheres, mas somente quando ela era transmitida por outro homem. De acordo com a pesquisa, quando a mesma mensagem era transmitida por uma mulher, o apoio aos direitos das mulheres diminuía.
Nesta semana, cometi um ato extremamente machista. Não há como minimizar ou dizer que fui incompreendido. O machismo é diário e estrutural.
Romper com isso tudo precisa ser nosso projeto político. Não apenas delas.
Todas as projeções apontam que décadas ainda serão necessárias para que as mulheres tenham a mesma representação no espaço público que os homens, Não há, portanto, como esperar por igualdade de representação política para que, então, esses temas sejam tratados de uma forma adequada.
No Brasil, o poder ainda está nas mãos dos homens. A urgência nos obriga a agir agora. Mas não se enganem. Não se trata de uma concessão que estaremos fazendo. Apenas justiça diante de direitos que historicamente foram roubados.
A história nos mostra como o controle de ventre passou ser um exercício crucial do poder. Como a figura da mulher é definida, ocupada, violada, dado conteúdo e valor, chancelada ou não por uma ideologia patriarcal.
No código de Hamurabi, há 4.000 anos na Mesopotâmia, uma mulher que cometesse incesto deveria ser queimada. Um homem? Apenas expulso de sua cidade.
Na Revolução Industrial na Inglaterra, mulheres foram acusadas – por homens – de serem as responsáveis pela alta taxa de mortalidade infantil diante de suas decisões de ir trabalhar. O real motivo dos óbitos era outro: a miséria da classe operária.
Foi apenas nos anos de 1970 que as mulheres suíças tiveram o direito ao voto. Naquele momento, um referendo foi convocado para decidir se elas poderiam ou não participar da vida política. Claro, apenas homens votaram.
Em 1948, a Suprema Corte dos EUA afirmou que as mulheres não podiam ser garçonetes nas grandes cidades, a menos que o pai ou o marido fosse o proprietário do estabelecimento. Foi somente em 1973 que as mulheres puderam fazer parte de um júri em todos os 50 estados dos EUA. Até 1974, os cartões de crédito podiam ser recusados por bancos às mulheres que não tivessem a permissão do marido.
O debate, portanto, é sobre autonomia, dignidade, futuro e saúde. A luta por um direito à escolha é fundamental para promover uma transformação estrutural das sociedades. E isso não pode ser uma bandeira apenas das mulheres. Seu ventre não é um símbolo religioso, um instrumento político ou a medida de seu valor. É apenas e somente dela.
E a responsabilidade por essa mudança de paradigmas, homens, também precisa ser nossa.