Indígenas e quilombolas: eternas “ameaças” à ordem e ao progresso

Notas sobre o conceito de “brasilidade”, sob o manto sagrado da igualdade liberal.

Por Gustavo Barreto, do Somos 99%

A diferenciação étnica esteve presente em toda a História da imigração do Brasil, principalmente a partir da intensificação da imigração europeia, a partir do fim do tráfico transatlântico de escravos. A diferença é que contou com focos distintos, ampliados ou deixados de lado pelos debates sobre o conceito de brasilidade realizados, principalmente, a partir da chegada da Coroa portuguesa ao Brasil, em 1808.

Antes, mas principalmente a partir deste marco histórico, a discussão sobre quem era brasileiro, quem deveria ser brasileiro ou, ainda, o que significava ser brasileiro tornou-se um tema de constantes debates. Um tema que, por estar inacabado e ser realizada de forma incompleta, acaba tendo como consequências sentimentos mistos na população em relação à xenofobia e ao racismo. A cada nova leva de imigrantes, o brasileiro volta a se perguntar: quem somos nós?

Tomemos como exemplo o racismo brasileiro. Uma campanha promovida pela organização não governamental IBASE em 2004 apontava, com dados de um ano antes, que o Brasil era um país racista sem racistas. Denominada “Onde você guarda o seu racismo?”, a campanha foi motivada por uma pesquisa que apontou que 87% dos brasileiros afirmavam haver racismo no Brasil, mas apenas 4% admitiam que pudessem ser racistas. Foram entrevistadas à época mais de 5 mil pessoas1.

Já a xenofobia, muitas vezes vinculada ao racismo (como nos casos contra imigrantes negros), reaparece frequentemente no noticiário e nas redes sociais, como ficou mais ou menos claro a partir de relatos da imprensa sobre a chegada em maior número de haitianos no Brasil, principalmente desde que um terremoto de grandes proporções atingiu o país caribenho em 20142, ou a partir da cobertura do surto do vírus ebola e suas possíveis consequências por aqui3.

A longa trajetória especificamente do racismo tem um vínculo direto com as políticas migratórias, que se atualmente são tidas como uma espécie de subárea dentro dos tópicos “trabalho” e “direitos humanos”, desde o Brasil Império, e mesmo no período joanino (após a abertura dos portos às nações amigas), permeava diversas problemáticas brasileiras e foi apresentada como a grande solução para o desenvolvimento do Brasil.

O tema foi prioritariamente de responsabilidade direta de D. João VI, que chegou a incentivar a vinda de chineses com o propósito de experimentar culturas agrícolas no Rio de Janeiro, como por exemplo o chá, por volta de 1814. Há relatos de imigrantes embarcando no país desde os primeiros momentos do período joanino, e mesmo antes, mas a primeira grande leva de imigrantes subvencionada pelo Estado foi, efetivamente, a de suíços, oriundos da cidade de Freiburg com destino a Cantagalo, hoje por este motivo chamada de Nova Friburgo. Eles vieram em condições degradantes, conforme será descrito mais à frente neste mesmo trabalho.

Os imigrantes foram apresentados, ao longo dos relatos na imprensa, como uma solução quase que mágica para os problemas do país. Além de substituir a mão de obra escrava, um desejo já manifestado por D. João VI (e cada vez mais ao longo do século XIX), os imigrantes ocupariam áreas desabitadas do território brasileiro, trariam sua experiência como agricultores europeus (que por muitas vezes não era nenhuma) e, de quebra, ajudariam a “melhorar a raça”. Muitos ideólogos do século XIX e início do século XX não se preocupavam apenas com o embranquecimento da população, como se poderia supor: um número considerável deles buscava, mesmo que por meio de teses racistas e eugenistas, constituir uma raça “superior” brasileira. Trata-se de um evidente indício, para quem olha pelo retrovisor da História, de que os elementos eugenistas da política nazista antissemita (por exemplo) possuía fortes raízes no Brasil, mesmo que as sementes fossem eventualmente estrangeiras (para não dizer europeias).

Com isso em mente, a política do Estado brasileiro, e não apenas a política migratória, ao mesmo tempo em que submetia o negro africano, o indígena, os mestiços e outros grupos étnicos e raciais a frequentes abusos em relação aos seus direitos – em comparação com os direitos dos cidadãos brancos europeus e brasileiros da elite da época –, cobria de subsídios os novos imigrantes europeus, os dotando historicamente de direitos que são negados, ainda em 2014, a cidadãos residentes no Brasil. Um dos exemplos mais bem acabados é o direito à propriedade.

O sistema de trabalho adotado pela maior parte dos proprietários agrícolas que atraiam trabalhadores imigrantes estava longe de ser ideal, em muitos casos, pelo fato de que a relação entre os proprietários, o Estado e o imigrante era efetivada fundamentalmente por meio de contratos. Em alguns casos, sequer contratos havia. Praticamente inexistia legislação que regulasse o tema e, com isso, não foram poucos os casos de promessas aos imigrantes não cumpridas e toda sorte de violações. Ainda assim, os imigrantes eram livres e conviviam, durante grande parte do século XIX, com os escravos lado a lado na lavoura, uma situação complexa que será analisada mais à frente.

A discussão que atravessou séculos foi levantada de modo bastante sintomático, por exemplo, em uma reportagem da Revista de História da Biblioteca Nacional, em sua edição de setembro de 2007, denominada “Etnia, pra que te quero”4. O texto trata longamente da construção da identidade por povos historicamente marginalizados, como os quilombolas e os indígenas, citando contradições como a ocupação de Porto Seguro (na Bahia) por povos indígenas que não habitavam “originalmente” o litoral sul da Bahia. A reportagem cita o exemplo do já citado “caso mais emblemático desse tipo de manipulação”, com os indígenas – diz a matéria – continuando a contar com a “condescendência das autoridades e movimentos sociais”.

O artigo faz uma longa discussão, citando diversos estudiosos – praticamente todos críticos de categorizações como “quilombolas” e “indígenas” – e retomando lugares-comuns presentes em toda a História da imprensa, como por exemplo a ideia não problematizada de que o Brasil é um “país miscigenado”. A miscigenação é tomada no artigo como um pressuposto, como fica claro no seguinte trecho: “Em um país miscigenado como o Brasil, que critérios definem a existência de etnias e povos independentes, merecedores de tratamento especial por parte do Estado? Alguns exemplos ajudam a mostrar como podem ser fluidos esses parâmetros”.

A antropologia cultural, com sua longa trajetória de intensos debates (conforme será exposto neste trabalho), é reduzida em uma das falas à “prevenção ao etnocentrismo” por meio da seguinte frase: “Esqueça os brancos”. A voz dissonante do próprio tom da matéria é da historiadora Lilia Schwarcz, que questiona: “Por que só nós nos julgamos no direito de agenciar a cultura?”.

Segundo Schwarcz, “eles também manipulam intencionalmente elementos que a cultura branca sempre valorizou”. E conclui: “‘Quer que a gente produza cestas? A gente produz’. Eles absorvem o que lhes chega, reelaboram, recriam e passam a ‘agenciar’ também. As culturas estão vivas, não são quadros de museu na parede. Um movimento pode até começar por influência externa, mas depois eles dão a volta, e isso é bacana. Se transformam em sujeitos e criam autoestima. É ridículo acreditar na lógica de que ‘nós’ alteramos a cultura, e ‘eles’ preservam”.

A matéria tem um claro viés antiétnico, ao usar um contraponto como o de Lilia Schwarcz e, logo em seguida, como se um exemplo da fala de Schwarcz fosse, citar o “caso mais emblemático desse tipo de manipulação”, que ela havia acabado de classificar como um agenciamento da cultura (e não como uma mera “manipulação”), ou usando ainda o termo “comunidades tradicionais” entre aspas. Articula-se a ideia de que, ao passo que a reforma agrária não vê avanços significativos nem mesmo na Constituição de 1988, conhecida como “Constituição Cidadã”, os povos indígenas e quilombolas têm lançado mão de estratégias alternativas para obter seu reconhecimento, muitas vezes – diz o texto – ampliando o conceito de quilombolas e de indígenas. Isso estaria prejudicando, completa o texto, a luta pelo direito à terra para todos os cidadãos. Os quilombolas passariam a ser, nessa nova interpretação antropológica, como “qualquer grupo negro rural com presença antiga na região”. O artigo sugere que esta interpretação estaria “desvinculada de seu sentido histórico”, já que quilombola era o termo designado para as comunidades de escravos fugidos do cativeiro. Uma das pesquisadoras ouvida pela reportagem, Márcia Motta, diz que sobrepor a “agenda étnica” à “agenda social” é uma “sinuca conceitual”, uma “furada a longo prazo”, pois o direito à terra independe da identidade étnica e, segundo ela, estamos “dependentes” do que classifica como “brecha negra” (sic).

A diferenciação entre os âmbitos “social” e “étnico” parece ser mesmo uma “sinuca”, como diz Márcia Motta, que por sua vez é jogada há dois séculos pelas elites residentes no Brasil. A ideia de que o “étnico” não é necessariamente “social” é, talvez, uma das heranças da Revolução Francesa. A nacionalidade deveria se sobrepor a toda a qualquer diferenciação de uma determinada sociedade, uma igualdade formal que fez com que a etnologia fosse ignorada por décadas na própria França do século XX, em meio aos intensos conflitos étnicos que ocorriam dentro da sociedade dita “francesa”. Um dos trechos do artigo da Revista de História expõe a problemática: “Enquanto não amadurece a este ponto [de a sociedade brasileira estar pronta a discutir a questão da propriedade], o país se distrai com a redescoberta de suas “populações tradicionais” e com a nova fragmentação étnica que isso configura, diferenciando brasileiros de brasileiros. É um caminho desejável?”

A palavra “étnico”, vale registrar, é um termo adotado de forma envergonhada pela maioria dos acadêmicos, muitas vezes como um substituto impensado do termo “racial”, conforme discutiremos neste artigo. Mas persiste aqui, neste discurso, uma forte tendência observada nestes dois séculos: a pouca problematização do que vem a ser “brasileiro”. Ao reivindicar que a segregação étnica (neste caso, indígena e quilombola) está “diferenciando brasileiros de brasileiros”, adota-se um conceito de brasilidade tradicional: é tão evidente a noção de “brasileiro” que você, pobre interlocutor, deve me poupar de lhe explicar o que é ser brasileiro. Mas quem sabe explicar, exatamente, o que é ser brasileiro? E por que um artigo sobre minorias não se propõe a fazê-lo?

Em termos culturais, a brasilidade é, quando muito, um exercício de futurologia. D. Pedro I passou boa parte de seu mandato tentando explicar, por meio de artigos assinados ou apócrifos da época, como se sentia um brasileiro, chegando a assinar textos como um “ultranacionalista”. A pergunta do artigo publicado (curiosamente) na Revista de História faz a mesma proposta: “É um caminho desejável?”. Com isso, e ao longo de todo o artigo, o autor tenta incitar à resposta: não, não devemos diferenciar os brasileiros, somos uma única pátria.

Esta linha de argumentação, mesmo que supostamente servindo a outros propósitos, tem servido de base para que ideólogos da igualdade formal (e liberal, para ser mais exato em termos políticos) decretem a completa inexistência do racismo no Brasil, dado que o país é indistintamente “miscigenado”. Assim como não podemos discutir quem é efetivamente indígena ou quilombola, dado que qualquer pessoa pode, segundo essa linha de pensamento descrito no artigo, se declarar índio colocando um cocar em sua cabeça como forma de obter benefícios do Estado.

Este artigo poderia ter sido escrito pelo imperador D. Pedro I em 1822, pelos republicanos na década de 1880, pelos eugenistas do início do século XX ou por ideólogos do governo Vargas nos anos 1930. A ideia permanece: somos todos brasileiros, e assim devemos permanecer. Evitem-se os quistos e promova-se a igualdade “plena”, mesmo que apenas formal, aculturando os brasileiros ou reconhecendo que eles já são, na verdade, aculturados. Somos todos, evidentemente, brasileiros.

A problematização do que é ser brasileiro é tão intensamente discutida que só pôde ser resolvida, ao longo destes 200 anos, por meio da coerção. Na República velha, por exemplo, os legisladores procuraram barrar a entrada de milhares de italianos de modo a evitar a formação dos chamados “quistos raciais”, uma expressão emprestada da ciência da época para indicar o alegado perigo que representava o excesso de estrangeiros da mesma nacionalidade em uma mesma região.

Foi esta a mesma base que fez com que Vargas adotasse a política migratória de cotas por nacionalidade, fortemente pressionado pelo furor nacionalista de setores aliados. Em nome da brasilidade varguista, centenas de instituições tiveram de mudar de nome e a educação e imprensa estrangeira se viram fortemente censuradas. Promovia-se, à força, a brasilidade de um povo “miscigenado”, incluindo dos milhares de imigrantes que aqui chegaram, em massa, desde os anos 1870.

A política do embranquecimento de sucessivos governos no Brasil deu certo, é preciso reconhecer: basta olhar, hoje, para instituições como a mídia, o Congresso Nacional ou a Universidade para perceber como os negros, os quilombolas e os indígenas foram historicamente deixados de lado. E como a tese da igualdade formal sempre foi hábil em minar os esforços de grupos minoritários na conquista de direitos. A cultura, um novo campo de batalha política, passa a ser então uma “ameaça” às elites constituídas, que combatem os esforços de reconhecimento comunitário por terem, justamente, ao seu lado um instrumento que se mostrou, historicamente, infalível na manutenção da ordem constituída: a igualdade liberal.

Em um artigo posterior, falarei sobre o agenciamento cultural, a cultura como campo de batalha política e sua importância na negociação de identidades e de tradições inventadas.

NOTAS

1 Para um resumo recente sobre a pesquisa, ver o texto de Rogério Jordão, assessor do IBASE à época da campanha, em http://www.ibase.br/pt/2014/11/onde-voce-guarda-o-seu-racismo/

3 Para um texto mais ou menos definitivo sobre o tema, vinculando inclusive a xenofobia ao racismo, ver o texto de Eliane Brum no El País, em http://brasil.elpais.com/brasil/2014/10/13/opinion/1413206886_964834.html, ou ainda sobre os casos ocorridos no Paraná em 2014: http://www.cartacapital.com.br/revista/825/ignorancia-viral-5389.html

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