O dia 19 de março de 1849 é um dos mais significativos do calendário da cultura negra. Nesta data, aconteceu a Insurreição do Queimado, esse emblemático episódio da história afro-brasileira. E apesar dos escassos registros sobre o assunto, a data é lembrada e celebrada, principalmente, no Estado do Espírito Santo, onde ocorreu o grito de liberdade dos negros escravizados.
por Jaqueline Freitas no Fundação Palmares
Principal movimento contra a escravidão ocorrido no Espírito Santo, a Insurreição do Queimado é resultado da construção de um processo político de conquistas e foi um marco na história da negritude capixaba. Contam os pesquisadores que a revolta nasceu de uma promessa não concretizada de liberdade, feita pelo frei italiano Gregório José Maria de Bene aos escravos da localidade de São José do Queimado, hoje distrito do município de Serra.
ESTOPIM – Tido como defensor dos ideais de liberdade, o missionário tinha interesses políticos em construir uma igreja na região, e teria garantido a negociação da alforria com os donos de fazendas, em troca da construção do templo pelos escravos. Há relatos de que o frei não teria garantido nada, e, sim, prometido interceder junto aos fazendeiros para obter a concessão da alforria. Consta, ainda, que ele realmente não admitia a escravidão e que teria estabelecido uma estreita ligação com os escravos, o que preocupava e contrariava quem usava a mão de obra escrava para enriquecer.
O fato é que o não cumprimento do que fora interpretado como uma promessa deflagrou uma rebelião. Relatos de descendentes dos sobreviventes apontam que mais de 300 homens, mulheres e até crianças manifestaram o inconformismo – afinal, a igreja fora entregue pronta antes do dia de São José, conforme combinado, e resultara de muito tempo de árduo trabalho. Conta-se, também, que o templo foi construído com pedras divididas por tamanhos, e carregadas por longas distâncias e subidas íngremes; as pedras pequenas, do tamanho de um punho, eram destinadas às crianças, algumas com apenas seis anos de idade.
VIOLÊNCIA – Comprova-se que houve o confronto e feridos dos dois lados. Uma das vítimas da Insurreição foi Francisco Roriz, ferido pelos negros com 17 caroços de chumbo, nas matas de Itaiobaia. Outra vítima foi o próprio comandante das Forças Policiais, Alferes Varella. Tal fato irrita os Policiais e batedores do mato, que passam a matar todos os negros que encontravam no caminho, tomando-os como revoltosos. Escravos encontrados na ladeira que desce para Aroaba, região perto do Queimado, foram todos mortos. Ao final o Chefe de Polícia Accioli informa, no dia 23 de março de 1849, que conseguiu encontrar 11 escravos, entre os quais um dos líderes da Insurreição, Elisiário, escravo do fazendeiro Faustino Antônio de Alvarenga.
A Insurreição que havia começado no dia 19, termina com a prisão de Elisiário, cinco dias depois. Todavia havia ainda negros foragidos espalhados pela região, tendo a Polícia continuado as buscas por mais alguns dias. Preocupado, o Presidente da Província, Siqueira envia ao Queimado mais Policiais sob o Comando de Manoel Vieira da Vitória, ordenando ao Capitão Antônio das Neves Teixeira Pinto, Delegado da Vila da Serra, que passasse a perseguir os fugitivos. Documentos esclarecem ainda que os habitantes do Queimado, Mangaraí e Serra auxiliaram as autoridades na captura dos negros. Pela crueldade com que tratou os escravos negros, arrastando-os pelo chão por léguas e léguas, o Delegado da Vila da Serra, Capitão Antônio das Neves acabou recebendo elogios pela maneira como se conduzira.
O Presidente da Província do Espírito Santo, Antônio Joaquim de Siqueira, em 20 de março de 1849, encaminha uma Carta à Corte no Rio de Janeiro narrando os fatos e informando que “o susto e o terror se acham apoderados dos habitantes desta Capital e lugares circunvizinhos.” Diante de tal argumentação de “susto e terror”, o Governo Imperial, atendendo a solicitação feita, acabou mandando o vapor “Paquete do Sul” que, no dia 30 de março aportou em Vitória trazendo um reforço de 31 soldados comandados por um Oficial. Dias depois regressava o vapor à Corte, levando a notícia da vitória dos legalistas. O escritor José Teixeira Leite informa que a caça aos negros foi “cruel e selvagem” e levada a efeito “por impiedosos batedores do mato.” Esta informação consta da página 332, do livro “História do Estado do Espírito Santo – edição de 1975.”
SUGESTÕES DE LEITURA
Insurreição do Queimado, de Afonso Cláudio de Freitas Rosa. Escrito e lançado ainda durante a vigência da escravidão, o livro foi publicado em 1884 e constitui a primeira narrativa monográfica acerca do episódio. O autor foi conhecido abolicionista e republicano.
Revolta Negra na Freguesia de São José do Queimado: escravidão, resistência e liberdade no século XIX na província do Espírito Santo (1845-1850), de Lavínia Coutinho Cardoso. Dissertação de mestrado em História, apresentada em 2008 na Universidade Federal do Espírito Santo.