A Insustentável Leveza do Ser

Somos todos Negxs!

Aline Dias

Semana passada vi uma noticia na internet que falavam dos B- Stylers, adolescentes japoneses que querem ser negros porque admiram a cultura hip hop norte americana e querem ser parecidos com os artistas que tanto eles admiram, e os artistas são negros. Para esses adolescentes, ser negro esta relacionado diretamente ao que a cultura norte americana vende como verdade, e entra goela abaixo desses japoneses. Para se firmar como negros, eles fazem bronzeamento artificial toda semana , para escurecer a pele. Esse processo de escurecer muito a pele, também faz parte do interesse em  chocar a sociedade japonesa, que culturalmente acredita que beleza esta ligada à uma pele quase transparente. Além de escurecer a pele, esses jovens procuram modificar seus cabelos para ficarem armados, trançados e até um black power “legitimo” criado por africanos que vivem nos guetos japoneses aparece em cena. Exótico? Bizarro? Diferente?
 
Para esses jovens ser negro é um esteriótipo bem marcado pela estética. A TV e outras mídias são muito responsáveis por homogenizar culturas e disparar preconceitos e esteriótipos. Aqui no Brasil também existe um grupo de pessoas que adora tratar as pessoas negras como fetiche. A única diferença é que no Brasil, as pessoas negras são comuns e deveriam fazer parte da mesma sociedade dividindo valores e costumes culturais. Mas como há segregação, um grupo resolveu recriar o que é ser negro no Brasil e dispara bizarrices que por aqui, a maioria das pessoas acha normal. O que achei curioso é que a reportagem dos jovens japoneses disparou na minha Time Line do facebook, todos tratando como bizarro, diferente e inédito mas sé só olhar pela janela é possível achar um exemplar dessa bizarrice em qualquer parte do Brasil. Talvez por estar muito perto, a maioria das pessoas não percebe quando tratam o outro como fetiche ou estão sendo fetichizadas.
Mas, o que é fetiche?
È bem comum ouvirmos falar sobre essa palavra apenas com conotação sexual, quando as pessoas falam sobre fantasias e desejos. Mas a palavra fetiche tem outras possíveis explicações que não por acaso tem tudo a ver com esse assunto. No século 18 os portugueses usavam a palavra “fetiche” para referir-se aos objetos que pertenciam aos cultos religiosos da Áfricaocidental. Com o roubo crescente de objetos do território africano, o termo tornou-se famoso pela Europa, sempre retratando objetos religiosos africanos como mistico, magico, misterioso e atribuindo á eles o caráter de fetiche. Outro sentido para a palavra fetiche foi dado por Marx quando usa “fetichismo da mercadoria” como um fenômeno psicológico e social onde os produtos ganham vontade própria, deixando de ser só um objeto e passam a ser alvo de adoração dos humanos, é um conceito ligado as teorias econômicas esse que ele descreve. Eu citei estas duas leituras possíveis da palavra “ fetiche”, pra lembrar que a cultura negra desde o inicio de sua exploração é vista como algo exótico, mistico e principalmente, algo que do ponto de vista do opressor, pode ser saqueado e realocado em outro contexto, sendo assim desligado do seu valor cultural original. Além do uso das coisas de pessoas negras, usaram também pessoas negras como objetos e nos coisificam há séculos. Engana-se quem pensa que falo só da escravidão. No início do século 18 até o século 21 pessoas negras são coisificadas e tratadas como fetiche.
È muito estranho quando uma pessoa se fantasia de outra. È estranho ver um japonês se caracterizando de “negro”, não é só estranho, é criminoso porque ser negro não é nada daquilo que esses jovens “estilosos” estão tentando retratar com aquelas roupas e cabelos. È criminoso porque a partir do momento que você coleta algumas informações sobre o outro e abandona o contexto em que aquilo é produzido, nasce outra coisa que muitas vezes nada tem a ver com o original. E, no caso de pessoas negras nasce um esteriótipo racista que há muito tempo os negros da diáspora africana lutam pra derrubar. È desse tipo de apropriação que nasce esteriótipos como “ negros tem um pênis gigante” “negras são mais quentes” e acaba evoluindo pra coisas mais agressivas. Nós não precisamos desses esteriótipos. Acredito que uma aproximação entre culturas e troca de informações são sempre bem vindas, principalmente no Japão onde os valores racistas do século 19 ainda são pulsantes. Mas não é da sociedade e costumes japoneses que eu quero falar. Há pouco tempo na TV Globo, durante o programa Big Brother Brasil uma das participantes disse: “Tenho quadril de negra,boca de negra, tenho tudo de negra, menos o cheiro. Por isso uso desodorante, se não fico com cheiro de neguinha”
A Insustentável Leveza do Ser
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Essa declaração horrorosa, cheia de esteriótipos racistas não ofendeu tanto os brasileiros quanto os japoneses fazendo cosplay de Rappers afro americanos. Outro exemplo menos recente, que causou burburinho mas não revolta foi protagonizado pela cantora Claudia Leite, quando lançou um CD chamado “Africa” e para ilustrar o CD ela aparece numa fotografia com roupas ligadas a Selva, Cabelos volumosos, pele muito escurecida, se auto intitulando “ Nega Loira”, em alguns momentos apareceu pintada de preto.
A Insustentável Leveza do Ser
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Homenagem, certo? Errado. A Claudia Leite estava fazendo cosplay de Africanos assim como os jovens japoneses fizeram cosplay dos negros norte-americanos. Uma pessoa pode prestar homenagens a população e a cultura negra sem se fantasiar como tal. Acontece que quando falamos sobre a cultura negra, esta naturalizado que todos podem meter a colher e retirar um pouquinho do que serve, e abandonar todo resto, mas na hora de falar sobre racismo, logo aparece o slogan de “somos todos iguais”. O que me preocupa não é a Claudia Leite se fantasiando de negra pra enriquecer um pouco mais ás custas dos africanos e dos pretos baianos, nós já sabemos que o capitalismo não sobrevive sem racismo. O que preocupa mesmo são as mulheres á minha volta, que dizem ser feministas e dizem compreender as demandas das mulheres negras. Estas mulheres estão fazendo a mesma performance dos japoneses e da nega-lora, estão nos silenciando e roubando nossos espaços.

A Insustentável Leveza do Ser
A Insustentável Leveza do Ser
Esta se tornando comum ir nas marchas e nos espaços feministas esvaziados de negras mas cheio de mulheres brancas com turbantes imensos na cabeça e fazendo pose de guerreiras africanas. Vejo minhas ancestrais estampadas nas camisetas mas o racismo presente em cada olhar que lançam pra cima de uma negra que chega pra dizer que elas estão sendo racistas. Claro, pra elas esta fora de moda e não faz sentido acusa-las de racismo, afinal como podem ser racistas se até usam frases escritas por negras e usam foto de guerreiras negras no facebook?
Deixar de ser racista minha flor, não é negar sua branquitude e se travestir de negra. Será que a sociedade branca já não roubou e se apropriou demais das nossas coisas? Deixem nossa identidade em paz! Nós não precisamos que vocês queiram nos imitar para que a gente se sinta aceita, igualdade não é isso. Quando nós nos enfeitamos com estampas africanas ou afro brasileiras, a sociedade racista entende ” ah, olha só que bonito, agora é meu!”, mas esperávamos que os espaços feministas fossem seguros e que neles não fossemos usurpadas culturalmente. Estes elementos e adornos que estamos usando para nos emponderar fazem parte da nossa identidade, identidade negra, e esse papo não é sobre vocês. Entendam que nem tudo precisa ser assimilado e roubado por vocês para que seja visto como comum, normal, Vocês precisam aprender a olhar o outro ser protagonista de suas conquistas sem se meterem no meio da conversa. Nós precisamos sim de brancos na luta antirracista, mas precisamos de brancos que trabalhem seus privilégios em seu próprio meio e não brancos pra tentarem ser negros “melhorados”. Quando uma pessoa branca ou socialmente branca se impõe como negra acreditando que pode representar ,e falar por todas as negras, elas estão nos silenciando e sendo tão racistas quanto todas as outras.
Meu cabelo cacheado é black power! Não, não é. Seu cabelo cacheado e muitas vezes liso, não é um black power. Cansei de ver mulheres com inveja dos crespos que estão aflorando por aí, graças á um trabalho árduo de auto estima feito pelo movimento negro tentando forçar a barra dizendo que seus cabelos não crespos, também podem crescer pra cima e ser um legitimo black! Mulheres, seus cabelos podem ser lindos, podem crescer pra cima, mas se não são crespos é desonestidade sua compara-los á um black power, que é um cabelo de resistência, de luta e só quem tem um crespo sabe o quanto dói ter os cabelos comparados á palha de aço e estigmatizados a vida toda, e agora que estamos conseguindo enxergar nossa beleza natural, todo mundo quer uma fatia do bolo? Nossos cabelos são nossos, e a vitória sobre isso também é nossa. Sabe, não sei se inveja é a palavra certa, porque cabelo crespo mesmo ninguém quer ter. Elas só querem ter estilo e estar na moda, o racismo sobre nossos cabelos continuam lá. Muitas mulheres pra ficarem dentro da moda, deixam os cabelos bagunçados pra parecerem mais volumosos e então reivindicarem seus lugares nos espaços negros, e o pior é que os espaços estão sendo cedidos. Qual é pretas? Estão com dó do opressor?
Sou afrodescendente, por isso posso representar as mulheres negras. Traduzindo: Sou branca e vou tomar o espaço de vocês, lero, lero! Reconhecer-se como afrodescendente é bacana para a história pessoal das mulheres feministas e pode contribuir muito para o espaço, mas não podemos esquecer que pessoas socialmente brancas, pra nós são brancas, e são nossos opressões naturais dentro desse sistema. Então porque deixa-las ter voz dentro das nossas vidas? Vejo uma forçada de barra gigantesca nesse sentido dentro dos espaços feministas, que assim como os japoneses moderninhos, estão usando a negritude como uma fantasia pra brincar um pouquinho e depois guarda-la para um outro momento oportuno. Precisamos ter muito cuidados com estas pessoas auto declaradas negras, elas podem deixar tudo isso de lado quando elas quiserem, e nós? Se as coisas estão tão fluidas e a autodeclaração é a onda do momento, podemos nos auto declarar brancas e nos livrar do racismo? Fato é que estas pessoas acham  muito legal ser negra na vila Madalena, é muito legal ser negra na paulista e a topda balada em lugares como o matilha cultural. Mas ser negra na hora de ser atendida num hospital, disputar uma vaga de emprego ou voltar pra quebrada sozinha, aí ser negra não mais tão legal e nem tão fluído e, na mão de gente branca ou afrodescendentevira teoria.
 
Se vivemos junto com pessoas negras não é natural que admirar e incorporar algumas coisas dessa cultura no meu dia a dia? Claro que sim. A cultura é algo que se modifica sempre que toma contato com algo novo, e isso acontece a todo momento. Mas o dizer sobre uma relação que não é de igual pra igual, uma relação onde um grupo, mesmo sendo a maioria da população é visto como exótico e só é convocado, nunca incluído e acompanha a apropriação de elementos de sua cultura na velocidade da luz, enquanto o fim do racismo se arrasta? È isso que acontece com a cultura negra. O tempo todo nós reclamamos e reivindicamos participação seja nos comerciais de TV, serviço público e nas universidades. E quando reclamamos somos entendidos como exagerados e um bando de reclamões . Nós temos uma Tv que possui um elenco geral que não representa a maioria da sua população, e uma população que se esforça para alcançar o padrão imposto pela TV ignorando que isso não vai acontecer completamente porque há coisas que não é possível modificar. Para as mulheres brancas é perfeitamente possível ser negra a hora que elas quiserem e as pessoas se fazem de míopes para não contraria-las e receber as flechas apontadas para si. Assim como homens fazem seus papéis performáticos de mulheres e nós também não podemos criticar ou reclamar da invasão deles porque logo somos acusadas de vitimismo e de querer exclusividade. Percebem como é uma questão de privilégios? Só quem tem os privilégios sociais é que pode navegar entre gêneros, entre cor, entre classe e não sofrer danos sociais  e políticos com isso. Agora me diz porque quando o oprimido tenta fazer esse passeio também não é reconhecido?
Me assusta os compartilhamentos de coisas como  ” somos todas…”, e a personagem final  da frase é negra. Entendo a intenção e o impulso, mas é desonesto fazer esse tipo de coisa porque fora da performance, nós sabemos quem é que vai pro camburão, quem é que vai ganhar as bananas e vai ter o emprego negado por causa do cabelo crespo.  Uma coisa é visibilidade, outra é achar que realmente é uma vitima possível do racismo. Por isso não entendi o espanto das minhas colegas brancas com os japoneses, vocês fazem a mesma coisa, se fantasiam de preta o tempo inteiro. Não entendi também os risos das minhas colegas pretas, porque vocês permitem que suas colegas brancas façam cosplay de vocês, e ainda apoiam só pra fazer parte do clubinho feminista liberal! Então decide minha gente, ou vocês gostam desses brancos racistas e suas performances afro, ou não gostam. O feminismo negro classe media que só se preocupa com a estética preta esquecendo que estamos nos piores lugares sociais e políticos não é representativo, ele só serve de enfeite para legitimar um discurso muito antigo do feminismo liberal: não somos racistas.

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