“A intolerância pode se tornar nos próximos anos um inimigo comum” , diz Jacques d’Adesky

Artigo produzido por Redação de Geledés

A intolerância pode se tornar nos próximos anos um inimigo comum.

O mais novo livro de Jacques d’Adesky, Percursos para o Reconhecimento – Igualdade e Respeito –se torna urgente com seu resgate histórico e consistente do período da escravatura ao início do século XXI, com uma série de provocações que nos apontam novas alternativas para as questões étnico – raciais brasileiras.

Com linguagem clara e simples, o doutor em Antropologia Social pela USP e licenciado em Ciências Econômicas pela Universidade Católica de Louvain, na Bélgica, retoma o pensamento de ícones como por Léopold Sédar Senghor, Aimé Césaire e Frantz Fanon, dialogando com a atualidade sobre racismo e as práticas coloniais.

Nesta entrevista à coluna Geledés no debate, Jacques d’Adesky discute o poder de emancipação da população negra e a possível “via libertadora das mentalidades de subserviência geradas pela escravidão e colonização”. O intelectual aponta ainda que mesmo diante da vigente intolerância no Brasil, não há motivos para desanimar.

A intolerância pode se tornar nos próximos anos um inimigo comum
 Foto:  Rosanea Santos

Geledés – A que se deve o resgate da história dos afrodescendentes através de distintos repertórios, trazendo de volta as discussões colocadas há décadas por Léopold Sédar Senghor, Aimé Césaire e Frantz Fanon?

O movimento da “negritude” de Senghor e Aimé Césaire, bem como o pensamento crítico de Fanon em sua famosa obra Pele negra, máscaras brancas, continuam atuais no século XXI. Muitas vezes os jovens militantes do Movimento Negro desconhecem a importância desses três pensadores. A negritude teve forte influência no Brasil, principalmente nas obras de poetas e poetisas da década de oitenta. Da mesma forma, o pensamento de Fanon proporcionou a tomada de consciência dos riscos da alienação do negro ao pretender se espelhar no branco, na ilusão mórbida de se tornar igual a ele. Naturalmente, isso apenas gerava maior subjugação psicológica, na medida em que ele continuava sendo visto como negro pelos brancos.

Geledés Qual, então, a relevância do conceito de negritude estabelecido por Senhor? E qual sua importância hoje?

O conceito de “negritude” foi forjado na década de trinta por Senghor e Aimé Césaire, então jovens estudantes em Paris, no período colonial da época. Senghor, oriundo do Senegal, entendia por negritude a beleza e o valor da civilização negro-africana em diálogo com os valores universais. Para Césaire, vindo da Martinica (território francês ultramarino), a negritude propiciava a denúncia do status de subalternização dos negros pelo colonialismo da França, a despeito de sua retórica falaciosa de igualdade e promoção dos Direitos Humanos.

“A reapropriação do discurso deve ser compreendida como o alargamento do poder de enunciação, por meio do qual os negros podem se posicionar e falar em nome próprio, sem o fantasma de ser tutelado por um discurso externo que venha lhe impor a pauta dos debates.”

Geledés- Quando discute o poder da emancipação, afirma que existe uma “reapropriação do discurso” por um número crescente de intelectuais. Como e por que isso se dá nesse momento?

Comparando com o século XX e seu reduzido número de intelectuais negros no Brasil, observa-se nos dias de hoje uma progressiva expansão da presença de intelectuais e pensadores afrodescendentes. Neste grupo, as mulheres têm logrado um lugar de destaque, tanto no espaço acadêmico quanto no universo da comunicação. Este fenômeno deve-se em parte às políticas públicas de ação afirmativa que proporcionaram maior acesso equitativo ao ensino superior, em especial no nível dos cursos de pós-graduação no país.

Nessa ótica, a reapropriação do discurso deve ser compreendida como o alargamento do poder de enunciação, por meio do qual os negros podem se posicionar e falar em nome próprio, sem o fantasma de ser tutelado por um discurso externo que venha lhe impor a pauta dos debates.

A intolerância pode se tornar nos próximos anos um inimigo comum
Capa do Livro – Divulgação

Geledés – O livro traz um debate importante sobre negar a meritocracia em vários âmbitos, inclusive no coletivo. De que forma fazer essa negação na política, na educação, nas artes e na comunicação?

A noção de “meritocracia” tende a focalizar exclusivamente o esforço individual, sacralizando o mérito. Nos debates em torno desse assunto, raramente é levada em conta a evidência de que as oportunidades de um indivíduo remetem, sim, ao esforço da própria pessoa, mas dependem também de seu pertencimento de classe, gênero, raça, etc. Se aceitarmos essas últimas constatações, fica evidente que os negros sempre terão menos oportunidades que os brancos. Os negros estão em situação de inferioridade na disputa por posições e cargos de prestígio por serem vítimas de discriminação e preconceito racial, mas também por viverem submetidos a condições precárias quanto à qualidade de ensino e saúde nas áreas periféricas das grandes cidades e nas regiões mais remotas do país, como por exemplo, as comunidades remanescentes de quilombolas.

No campo político, o fato do número de negros ser demograficamente superior ao da população branca não assegura uma representação equitativa no Congresso Federal, nas Assembleias Estaduais e Municipais, pois o custo de uma campanha eleitoral demanda elevados recursos financeiros, que poucos candidatos negros possuem.

Geledés- Outra questão relevante levantada pela obra é sobre levar à consciência da livre escolha em instituições como as igrejas, famílias, justiça. De que forma esse debate acontece e o que ele contribui para escolhas importantes, inclusive na política, diante desse cenário de ascensão da extrema direita?

A liberdade de consciência e a liberdade de formar uma família são direitos que constam na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. A primeira diz respeito à livre escolha de uma religião, ou até mesmo mudar de religião. A segunda refere-se à proibição, sob qualquer pretexto ou circunstâncias, de ser forçado a se casar contra sua própria vontade, a despeito de possíveis costumes ou tradições. Estas liberdades são consideradas inerentes ao indivíduo, sem admitir a interferência do Estado ou qualquer outra instituição.

O pleno exercício desses direitos requer o respeito e o reconhecimento da dignidade da pessoa humana, mas é preciso um nível adequado de educação para que a pessoa tenha plena consciência de suas liberdades fundamentais.

“A liberdade de consciência e a liberdade de formar uma família são direitos que constam na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948.”

Geledés – Ainda nesse ambiente de polarização no país, como estabelecer o que chama de “florescimento do self”? Por favor, explique esse fenômeno.

Como não vivemos fora do mundo, é difícil nos abstrairmos totalmente das influências sociais externas. Apesar disso, tomar decisões e agir sempre de acordo com nossas convicções pode nos levar ao pleno florescimento de nosso “self”, uma via libertadora das mentalidades de subserviência geradas pela escravidão e colonização.

Idealmente, esse caminhar aponta para a referência de uma ética baseada na reciprocidade e no reconhecimento, onde cada indivíduo se apresenta como pertencendo à mesma humanidade. Nessa ótica, é imprescindível respeitar e reconhecer a figura humana do outro. É assim que deveria ser, mas não é, pois os homens não agem dessa maneira. Ao contrário, existem entre eles relações de dominação que engendram um modo de ser conflituoso.

Geledés – O que é autenticidade, outro conceito colocado pelo livro, e como invocá-la entre a população negra?

A autenticidade diz respeito ao amor próprio e a autoestima da pessoa humana, com o reconhecimento de sua dignidade. Este conceito repousa sobre uma forma de se situar no mundo. O espaço social livre de opressão permite a plena realização de si mesmo, com base num leque de escolhas que não constrange a pessoa humana, potencializando as relações intersubjetivas em contexto de igualdade e liberdade.

Geledés – Outra provocação interessante é sobre o pensamento de Sócrates de que a grande maioria dos homens confunde conhecimento com simples crenças e opiniões. Em um mundo dominado pelas mídias sociais e fakenews, como avançar nessa sobre apropriação do conhecimento?

Há de se convir que as falsas notícias disseminadas pela mídia tradicional já existiam antes do advento da internet e das redes sociais. A grande diferença nos dias de hoje é a multiplicação de fontes de notícias propiciadas pelo acesso quase irrestrito e universal à internet.

Para evitar o risco de ser objeto de possíveis manipulações em sites maldosos que se encontram nas redes sociais, uma primeira recomendação será adotar uma permanente posição crítica e de distanciamento diante do intenso fluxo de notícias com que somos bombardeados cotidianamente.

O filósofo Sócrates já nos alertava que as opiniões não são muito confiáveis, pois mudam no tempo e diante das circunstâncias. A opinião que expressamos com plena convicção hoje pode ser trocada amanhã por outra contrária, com igual virulência.

As opiniões não se baseiam em conhecimento suficientemente justificado, podendo ser falsas ou verdadeiras. Há também de se desconfiar das crenças que têm muitas vezes um lastro dogmático, impedindo o estabelecimento de debates e questionamento.

Quanto ao conhecimento, este exige, segundo Sócrates, um investimento na educação. Ele acrescentava que somente o conhecimento baseado no uso da razão nos permite não confundir as aparências com o mundo verdadeiro.

Certamente, as recomendações formuladas por Sócrates ainda na Grécia Clássica podem ainda hoje nos ajudar a não cair nas armadilhas das fakenews.

Geledés – O avanço do feminismo e a luta contra o racismo e sexismo nas últimas décadas no Brasil e no mundo contribuíram para uma contrarreação, aumentando a onda de extrema direita e ataques às mulheres e gays? Se sim, de que forma?

Se considerarmos a subjugação das mulheres no mundo, por motivo religioso ou devido à tradição, podemos afirmar que a luta das suffragettes na Inglaterra no início século XX reivindicando igualdade no cenário político ou no mercado de trabalho é relativamente recente na história da humanidade. Mesmo com os movimentos reacionários contra as conquistas feministas, não há porque desanimar. Não há motivo sério para desistir da luta.

Da mesma forma, o combate contra o racismo que propiciou as conquistas dos Direitos Civis na América do Norte acabou ajudando o movimento de “Orgulho gay” a conquistar seu lugar em vários países do Ocidente. Em contraposição, ondas de homofobia têm se propagado com intensidade em países europeus como a Rússia e Hungria, sem esquecer o próprio Brasil.

A intolerância pode se tornar nos próximos anos um inimigo comum na luta contra os fundamentalistas religiosos, o racismo, o sexismo e a xenofobia, levando em conta também a expansão de fluxos migratórios em direção à Europa.

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