Isso é racismo? Ou seria injúria racial?

É bastante comum que pessoas negras sejam as primeiras a serem revistadas durante uma blitz. Recentemente, uma imagem de um documento oficial da Polícia Militar da Campinas circulou pelas redes sociais. Nele, estava explícita a ordem de revistar negros e pardos, o que causou muita polêmica nas redes sociais. Os internautas afirmavam que se tratava de uma medida discriminatória e racista.

O estudante de jornalismo Thiago Lima, 29 anos, presenciou uma cena aparentemente preconceituosa e bem parecida com as ordens policial de Campinas. Na volta para casa,  por volta das 22h, o ônibus em que estava foi parado numa blitz. “Dois policiais entraram e deram uma olhada nos passageiros, que não eram muitos. Até me olharam, mas na hora de revistar, escolheram três negros aleatoriamente e os revistaram dos pés à cabeça. Quando desceram, observei que eram os únicos negros do ônibus. Pode até ser coincidência, ou pode ser que a pessoa procurada por eles era negra, mas achei que foram preconceituosos”.

Expressões como “preto fedorento”, “judeu safado”, “baiano vagabundo” entre outros, também caracterizam outra forma de discriminação. Essas ofensas atribuem características negativas a uma pessoa e geralmente levam em conta a questão racial como xingamento. Em março de 2011, uma banana foi atirada próxima ao atacante Neymar durante um amistoso com a Escócia, em Londres. Em outro jogo, no início de 2013, Neymar ouviu alguém chama-lo de “macaco” e acreditou ter sido Roberto Fonseca, técnico do Ituano, time adversário. Depois voltou atrás e decidiu não acusá-lo de racismo por não ter certeza se foi ele mesmo quem falou.

Outro caso semelhante aconteceu com o cantor Alexandre Pires. Em 2012, ele lançou a música “Kong”, cujo no videoclipe apareciam o jogador de futebol Neymar e o funkeiro Mr. Catra vestidos como o gorila King Kong. A crítica acusou Pires de racismo por associar negros a macacos. O cantor, que também é afro-descendente, defendeu-se afirmando que o conteúdo era isento de qualquer teor racista. O caso até foi parar no Ministério Público Federal, mas foi arquivado.

 

O jornalista Fidélis, 31 anos, lembra-se de quando trabalhava em uma farmácia e viu uma colega ser ofendida. “A loja estava cheia. O cliente de aproximadamente 70 anos começou a ficar nervoso com a demora do atendimento. O senhor acusou-a, dizendo que ela não queria falar com ele. A menina, então, pediu licença à senhora que estava no balão e disse: “O senhor vai ter que esperar. Assim que eu terminar aqui, te atendo”. Daí o coroa mandou na lata: “Você tem que me atender, sua neguinha, eu pago teu salário!”. Foi o suficiente para causar o maior tumulto na loja. A turma do “deixa disso” agiu e ela ficou tão chocada, que não teve ímpeto de levar a queixa para frente”, relata.

Mas qual é a diferença?

O que nem todos sabem é que ofensas como estas demonstradas anteriormente não são classificadas como racismo. Perante a lei, atribuir uma qualidade negativa a uma pessoa é considerado crime de injúria. Segundo o advogado Fábio Miranda, a principal diferença entre o racismo e a injúria é que o primeiro se refere a uma ofensa voltada a um determinado grupo, enquanto o segundo ofende uma determinada pessoa.

O crime de injúria está no código penal no Artigo 140 da Lei 9459/97 e se resume na utilização de elementos referentes à raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência. “Este crime consiste justamente em ofender a dignidade, o decoro de uma pessoal em relação à sua raça ou à sua cor. Por exemplo, se tiver uma pessoa negra e a outra vier e falar “seu negro horroroso” ou “seu negro, você não vale nada. Você não tem estudo, né?”, isso é considerado uma injúria racial”, explica o advogado.

O crime de racismo, por sua vez, é direcionado a um grupo específico. No caso dos negros, o racismo é direcionado à comunidade negra. Já a injúria racial é direcionada àquela pessoa especificamente, e mesmo sendo uma pessoa de cor não é considerado racismo. A punição para esses crimes também é diferente. A pena é mais severa para o racismo, que “é um crime que não prescreve e inafiançável, como consta no artigo 20 da lei 7716/89. Ou seja, se uma pessoa for presa acusada de racismo, ela não vai ter fiança arbitrada”, explica Fábio. No crime de injúria racial, o delegado estipula o valor da fiança e se a pessoa puder pagar, pode responder o processo em liberdade.

O racismo, então, se refere a pratica de privar e proibir determinada pessoa de algo em decorrência da sua raça. Para facilitar o entendimento, Fábio exemplifica o racismo da seguinte forma: “Vamos dizer que eu tenha uma loja e dissesse que nela não entra judeus ou negros. Isso ofende toda coletividade de judeus e dos negros, de pessoas de cor ou de outras etnias”. Já o crime de injúria não é classificado como um ato racista, uma vez que ela não priva o indivíduo de nada. No entanto, isso não altera o fato da injúria ser um ato deselegante e mal educado.

Na teoria funciona, mas na prática…

A lei contra os crimes de racismo e injúria racial existe, mas não funciona em sua plenitude. O advogado Humberto Adami, do Instituto de advocacia Racial e Ambiental (IARA), conta que é mais comum do que imaginamos a existência de casos que se enquadrariam nesses crimes e que são registrados em outra categoria.

Humberto lembra-se de um acontecimento no qual uma mulher negra que foi cuspida e xingada dentro do ônibus por ser negra. Ele, junto ao movimento negro, teve que intervir, pois pelo delegado o acusado responderia por constrangimento. “O delegado queria colocar como constrangimento e nós insistimos primeiro para racismo. No final, eles acabaram enquadrando como injúria racial”, explica.

O processo não foi tão simples. As pessoas envolvidas ficaram horas dentro da delegacia. Para o advogado, sua carteirinha de ouvidor nacional da igualdade racial e o muro feito por pessoas negras na frente da delegacia fez diferença na hora de registrar a ocorrência. ”Fomos todos à delegacia e eu levei minha carteirinha de ouvidor nacional, e posso dizer hoje que fez uma diferença, porque o tratamento deferido lá na delegacia foi diferente. Isso fez a diferença na hora do tratamento do delegado. Eu posso dizer que o que ia acontecer lá é que era mais um caso no qual as coisas seriam resolvidas da maneira usual. Não ia ter nem atenção, já estavam preparando para liberar o cidadão que olha para a cara de uma mulher negra, sem ela ter feito nada, cospe na cara dela e diz: sua negra safada”, conta o advogado.

Em São Paulo, no ano de 2006, um caso de racismo ganhou repercussão na mídia. Humberto conta que Simone Diniz, uma mulher negra e paulista, viu o anúncio de emprego em um jornal em que a pessoa procurava por uma empregada branca. Mesmo com a especificação “empregada branca”, ela foi tentar a vaga. “Quando ela chegou, o anunciante da vaga disse: mas além de preta, você é também analfabeta? Porque eu quero contratar empregada branca. O que você faz aqui com sua cara preta?”, conta ele. 

No entanto, o delegado responsável não considerou ser um caso de racismo, e o inquérito acabou sendo arquivado no final. Depois o caso chegou a Comissão de Afro Descendência da OEA, e o Estado Brasileiro foi condenado a pagar por não garantir nas suas autoridades o cumprimento da lei. O estado de São Paulo pagou a quantia de R$ 35 mil há três anos. A dificuldade em fazer qualquer tipo de ocorrência é bem conhecida pelos negros que têm experiência em lidar com delegacias e o “caso Simone Diniz acontece todo dia na porta das delegacias brasileiras” conclui o advogado.

No final das contas, quem pagou foi o Estado, e não quem cometeu o crime. Humberto não é a favor de a sociedade ter que pagar por uma falha do Governo. Segundo ele, isso é ruim do ponto de vista econômico. “A indenização que deveria ser arcada apenas pelo ofensor racial passa a ser coletivizada e arcada por toda sociedade, quando ela deveria ser sustentada teoricamente apenas por aquele que praticou o caso de racismo.”, explica.

Embora as leis contra injúria e racismo existam, há uma luta do movimento negro do país para que elas funcionem na prática. Estima-se que cerca de 7000 mil queixas – sejam elas de crime de injúria ou racismo – deixam de ser registradas por dia no Brasil por omissão do Governo, que é representado pelos delegados, promotores e advogados. “Não basta você ter uma lei bonita se ela não acaba sendo operada pelos chamados executores do direito. A lei pode ser melhorada, ela pode ser facilitada, ela pode ser muitas coisas. Mas essa é a lei que nós temos no momento, é possível sim ser melhorada, mas no momento a que a gente tem é essa dai. E por conta desta omissão destas autoridades do país, os representantes do sistema que vem a ser o delegado, o promotor de justiça e o juiz de direito, que nós todos temos que sustentar essa indenização.”

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Fonte: Viva Favela

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