Jarid Arraes fala da importância de Conceição Evaristo em sua trajetória

Em 1º de maio comemora-se o Dia da Literatura Brasileira. Em homenagem à data, CLAUDIA convidou Jarid Arraes para falar sobre mulheres que a inspiram. Nascida em Juazeiro do Norte, no Ceará, ela é escritora, poeta e cordelista. Seu quarto livro, “Redemoinho em Dia Quente”, venceu o Troféu APCA de Literatura na categoria Contos, em 2019. Ela também é autora dos livros “Um Buraco Com Meu Nome”, “As lendas de Dandara” e “Heroínas negras brasileiras em 15 cordéis”.

Aos 29 anos, Jarid é uma das principais vozes contemporâneas da literatura de cordel, com mais de 70 obras publicadas nesse segmento. Uma jovem escritora em franca ascensão que, por muito tempo, acreditou ser impossível chegar a esse patamar. Foi na obra de Conceição Evaristo – vencedora do Prêmio CLAUDIA em 2017, na categoria Cultura – que ela encontrou inspiração para correr atrás do sonho de publicar livros.

A seguir você confere o relato poético de Jarid Arraes, contando detalhes de sua trajetória. A pedido de CLAUDIA, ela também indica uma série de livros escritos por mulheres brasileiras.

Jarid com seu livro “Redemoinho em Dia Quente” e o Troféu APCA (Jarid Arraes/Divulgação)

“Muita coisa mudou na minha vida quando conheci livros escritos por mulheres. Antes disso, crescia cercada por livros escritos por homens. O acesso era difícil. No interior do Ceará, no sertão caririense, as bibliotecas escolares não tinham variedade e os sebos estavam cheios, mas cheios de clássicos e livros didáticos. Os clássicos eram os livros escritos por homens, que eram os mandatórios na escola, e eu, que não tinha dinheiro para livros, lia o que chegava até minhas mãos.

Apesar disso, tive muita sorte. Me formei com Paulo Leminski, Augusto dos Anjos e, um dos meus favoritos, Carlos Drummond de Andrade. A poesia foi a linguagem literária que me arrebatou e me fez tentar escrever, primeiro copiando o estilo dos poetas que eu lia. Depois, desenvolvendo minha própria voz, meu jeito de fazer dançar o mundo interno e o externo, ainda que as imagens fossem poucas e quase sempre as mesmas.

Eu escrevia todos os dias, mas escondia cada palavra. Para mim, ser escritora era algo tão impossível que sequer era considerado. Eu escrevia, escrevia, escondia, escondia. Foi só quando comecei a pesquisar obras de mulheres que esse enorme silêncio foi sendo preenchido, aos pouquinhos, com a voz do desejo que, na verdade, sempre existiu em mim. Emudecido, envergonhado.

Eram mulheres como eu, mas eu ainda sentia que estavam tão distantes de mim. Nenhuma delas se parecia comigo, conhecia o lugar onde nasci, tinha o meu vocabulário ou posição social. Eu ainda não sentia que ser escritora era possível. Não para uma garota do sertão como eu. Escrevia, escrevia, escondia, escondia. Ao mesmo tempo, quando descobri Sylvia Plath, Virginia Woolf e Anne Sexton, senti que um pouco mais de mim estava sendo ouvido entre tantos sons incompreensíveis. Escritoras com vidas trágicas. Eu gostava daquela dor, daquela estranheza, porque nada me parece mais feminino do que a mais crua expressão do que nos tornamos.

Esse foi meu primeiro encontro transformador com a escrita de outras mulheres, mas onde estavam as brasileiras? Eu vivia uma mistura de impedimento financeiro e falta de clareza sobre onde procurar. Quando conheci as primeiras autoras nacionais fora dos livros infantis, fora dos pequenos trechos nas apostilas da escola, eu quase me afoguei de tanto maravilhamento. Era incrível sentir outros mundos. Infelizmente, aqueles mundos nunca eram intensamente meus, nem um pouco, então a imagem do que era um escritor – uma escritora – continuava distante e cheia de brilho. Com todos os clichês sobre jóias, troféus, estrelas.

Foi na adolescência que conheci Conceição Evaristo, a primeira escritora negra que li na minha vida. E, veja bem, eu e Conceição ainda somos muito diferentes em muitas coisas, mas o que nos é comum se faz imenso. Conceição é uma mulher que nasceu numa família pobre e contou principalmente com sua mãe. Foi empregada doméstica e conciliava esse trabalho com seus estudos. Um dos seus romances, “Ponciá Vivêncio”, fala sobre discriminação racial, de gênero e classe. E apesar de ter publicado um escrito seu pela primeira vez em 1990, quando eu ainda nem tinha nascido, somente em 2007 “Ponciá Vivêncio” foi objeto de estudo acadêmico no Brasil.

Nada traduzia melhor a busca pela escrita do que Conceição Evaristo. E ler a literatura de Conceição foi um espelho me revelando que escrever era possível. Alcançável. Era coisa para mim, coisa para uma garota como eu. Aquela aproximação foi o sussurro que me disse: você não está condenada ao silêncio.

É realmente chocante quando você se identifica profundamente com um livro. Poucas pessoas sentem essa conexão quase corporal, porque a maior parte dos livros muito famosos, acessíveis em livrarias de cidades pequenas nos anos 2000 – isso se você tiver a sorte de ter qualquer livraria onde você mora – pode até dizer coisas comuns a nossa qualidade humana, mas isso depende muito mais da nossa empatia, de vontade de tocar outro ser. Nós arrancamos
qualquer coisa que nos faça sentir parte daquela história. Pode ser a personalidade questionadora da protagonista, pode ser a figura de um pai ou mãe autoritários, mas se essas histórias se passam enquanto a neve está caindo, se o trânsito de São Paulo é mencionado, e você não tem nada disso, e você sabe que aquilo poderá nunca ser familiar, essa conexão nunca estará totalmente completa.

É muito especial encontrar escritoras que formam perguntas que você também indaga ou escritoras que te fazem sentir parte personagem, parte criadora daquelas palavras. Conceição me fez sentir assim: encontrando pedaços de mim que eu nunca tinha achado. Essa também é a beleza do conhecimento, porque ele abre caminhos e constrói pontes. Porque junto de Conceição vieram Miriam Alves e Esmeralda Ribeiro. Alice Walker, Toni Morrison e Maya Angelou. Elas foram pontes. Depois delas, todas as outras autoras do mundo, todas as mulheres da literatura, se tornaram parte da minha dança.

Como um véu que finalmente cai, eu estava de visão limpa. Eu estava completa. Talvez você já tenha ouvido alguma escritora falar que começou a escrever ainda pequena, mas só compartilhou o que escrevia a partir de certo ponto da vida. Eu escuto isso o tempo inteiro. Criei um projeto chamado Clube da Escrita Para Mulheres e quase todas as
participantes, de contextos sociais, idades, origens diversas, dizem o mesmo. Pensam que não podem se afirmar escritoras, não ainda, quem sabe um dia, talvez nunca. E grande parte do trabalho que faço está em compartilhar meu processo e encorajá-las para que se enxerguem escritoras desde já.

Quando tentei publicar meu primeiro livro, recebi dezenas de nãos. A temática do livro não tinha espaço no mercado, diziam, não podiam investir naquele momento em alguém que já não tinha a garantia de vender bastante, me explicavam. E o que entendi, na verdade, foi que o mercado editorial era muito mais complexo do que o sonho de ser publicada porque você é boa e foi descoberta. Não era o meu livro que não tinha espaço no mercado, era o mercado que não se abria para protagonistas diferentes do que era – e ainda é – exaustivamente repetido.

O mercado parecia não saber que muita gente queria ler uma história como aquela, a história de Dandara dos Palmares, um dos ícones mais inspiradores que posso citar, líder na luta contra a escravidão no Brasil. Muita gente queria ler aquela história não porque eu era a escritora – poderia ser qualquer outra como eu – mas sim porque onde mais poderia ser encontrado algo daquele jeito? Se ainda hoje tantas pessoas têm dificuldade de citar autoras contemporâneas, escritoras além do sudeste, diferentes de si mesmas.

Então eu decidi me autopublicar. Encorajada pela escritora e ilustradora Aline Valek, que fez as ilustrações da obra, paguei as ilustrações, a impressão, a publicação do meu primeiro livro com um empréstimo. Vendia online usando as redes sociais e meu e-mail. Em meses a edição estava completamente esgotada. Não demorou e a primeira editora apareceu, Helena Maria Alves. Juntando meus livros com a Literatura de Cordel, que eu já escrevia e publicava também de modo independente e artesanal, montando a mão meus cordéis, eu cheguei às livrarias. No final do ano passado, meu livro de contos ganhou um prêmio. E na hora de recebê-lo, eu agradeci a outra mulher, Luara França, a editora que trabalhou comigo e abraçou cada uma das minhas ideias, cada trecho de conto com personagens mulheres do sertão, cada parte da garota do interior do Ceará que um dia entendeu que escrever era coisa de mulher. Qualquer uma. Todas.

Sempre digo que seria lindo ver uma quantidade transbordante de leitoras, mas seria ainda mais belo ver uma quantidade transbordante de escritoras. Hoje sou próxima de muitas autoras brasileiras contemporâneas. Compro e leio seus livros, divulgo, gosto de apoiá-las, principalmente aquelas que estão começando. Estar viva no mesmo tempo que essas mulheres é recompensador. Vejo como cada uma trabalha para transformar a literatura brasileira em algo maior, mais diverso, com mais pontos de vista e mais vozes. Elas criam grupos de leitura, de escrita. Mulherio das Letras, #LeiaMulheres, Slam das Minas, Cadernos Negros, editoras e selos que publicam mulheres, graduandas, mestrandas e doutorandas que estudam e pesquisam a literatura brasileira escrita por mulheres. Curadoras de eventos literários que expandem seus repertórios e convidam escritoras de todas as regiões do país.

Mulheres inspiradoras por toda a parte. Construindo tudo que importa e ficará na História para fortalecer as pequenas leitoras de amanhã. Por mais difícil que seja, porque é bastante difícil.

Em junho de 2018, Conceição Evaristo oficializou sua candidatura à Academia Brasileira de Letras, que estava com uma vaga aberta. Foi um período de campanha intensa nas redes; criamos hashtag, falamos sobre isso na mídia, argumentamos como seria importante tê-la naquele lugar. Conceição recebeu apenas um voto. A cadeira foi para um homem. Apesar de difícil, fomos fortes. Juntas, nós somos.”

Jarid com seu livro “Redemoinho em Dia Quente” e o Troféu APCA (Jarid Arraes/Divulgação)

Jarid Arraes indica livros de autoras brasileiras

Olhos D’água – Conceição Evaristo

“Livro de contos premiado com o Jabuti, ‘Olhos D’água’ é uma verdadeira apresentação de sentimentos profundos e histórias que molham o rosto, como promete a incrível Conceição Evaristo – uma das maiores referências da literatura brasileira e inspiração para tantas outras escritoras negras.” Clique aqui para comprar.

Controle – Natalia Borges Polesso

“Primeiro romance da autora, que ganhou o Prêmio Jabuti com seu livro de contos ‘Amora’. Conhecemos a vida de uma garota epiléptica superprotegida que descobre novos sentimentos pela melhor amiga e como realmente começar a viver. Se você gosta da banda New Order, vai apreciar ainda mais os trechos das músicas citados na obra.” Clique aqui para comprar.

Enterre Seus Mortos – Ana Paula Maia

“Outra autora premiada. ‘Enterre Seus Mortos’ foi um livro que me fez refletir sobre valores humanos, sobre o peso da vida e da morte, e sobre o trabalho invisível, muitas vezes considerado grotesco. Indico esse livro para quem deseja ler algo único, com uma pegada de horror e suspense.” Clique aqui para comprar.

Quarenta Dias – Maria Valéria Rezende

“Uma mulher idosa é obrigada a mudar de cidade pela filha, para que faça o papel de avó, mas acaba se perdendo e vivendo nas ruas de Porto Alegre. Enquanto não encontra seu caminho de volta, a protagonista compartilha seu diário escrito num caderno escolar com capa da Barbie. Vencedor do Prêmio Jabuti. Escrito por uma mulher maravilhosa, que combateu a ditadura, é freira e feminista.” Clique aqui para comprar.

Água Indócil – Anna Clara de Vitto

“Um livro de poesia para quem não consegue evitar o transbordamento. Anna Clara de Vitto é também uma das coordenadoras do Clube da Escrita Para Mulheres. ‘Água Indócil’ nos diz que está tudo bem mergulhar nos questionamentos existenciais; tudo bem querer gritar diante do machismo; tudo bem encontrar descanso mesmo sentindo a ressaca do mar.”

Eu não Consigo Parar de Morrer – Camila Assad

“Uma oportunidade de contato intenso com a poesia e com muitos temas difíceis de elaborar. Ainda bem que Camila nos ajuda nesse processo e marca seu lugar na poesia brasileira com sua escrita rica e destemida. Eu também não consigo parar de morrer. Você consegue? Enquanto pensa nisso, dá pra encontrar alguns dos poemas do livro publicados online. Vá em frente.”

Diário de Bitita / Quarto de Despejo – Carolina Maria de Jesus

“Faz pouco tempo que Carolina voltou às livrarias e listas. Antes disso, quando ‘Quarto de Despejo’ foi publicado, ela chegou a vender mais livros que Jorge Amado. Se passando no período do Brasil pós-abolição, ‘Diário de Bitita’ nos conta como Carolina vivia essa realidade com sua família, especialmente sua mãe, na busca por trabalho como empregada doméstica. Se você já leu ou pretende ler ‘Quarto de Despejo’, a famosa obra que retrata a vida de Carolina em uma antiga favela de São Paulo, passe pelo ‘Diário de Bitita’. A dupla é uma verdadeira pancada.” Clique aqui para comprar “Quarto de Despejo” e aqui para comprar “Diário de Bitita”.

Um Defeito de Cor – Ana Maria Gonçalves

“Sem dúvida, ‘Um Defeito de Cor’ já é um clássico. Deixo vocês com a sinopse: “Fascinante história de uma africana idosa, cega e à beira da morte, que viaja da África para o Brasil em busca do filho perdido há décadas. Ao longo da travessia, ela vai contando sua vida, marcada por mortes, estupros, violência e escravidão. Inserido em um contexto histórico importante na formação do povo brasileiro e narrado de uma maneira original e pungente, na qual os fatos históricos estão imersos no cotidiano e na vida dos personagens.” Clique aqui para comprar.

Ninguém Vai Lembrar de Mim – Gabriela Soutello

“Solidão, relacionamentos que se desencontram, rachaduras na vida. Ninguém vai lembrar de mim é um livro sobre mulheres que amam mulheres, que sofrem por outras mulheres, que se sentem sozinhas entre mulheres, sozinhas na cidade, sozinhas dentro de si mesmas.” Clique aqui para comprar.

Hospício é Deus – Maura Lopes Cançado

“Maura Lopes Cançado não é um nome amplamente conhecido hoje em dia, mas essa obra é tudo o que você precisa para encarar o passado em que pessoas – muitas delas mulheres inadequadas – eram esquecidas nos manicômios e sanatórios. Tanto a escrita quanto a história de Maura são impactantes.” Clique aqui para comprar.

Costuras Para Fora – Ana Squilanti

“Vinte contos sobre as tramas sensíveis da vida, o escondido, o não dito e aquilo que tem, também, beleza. Em um dos contos mais celebrados da obra, a personagem, que é chamada de gordelícia por um cara, fala sobre sua relação com o corpo, as tentativas de emagrecer, as cintas e como é ser ‘bonita de rosto’.” Clique aqui para comprar.

Dilúvio Mudo (Uma Arcana Jornada) – Natalia Amoreira

“Você gosta de astrologia, tarô, do que é misterioso, constelado e simbólico? Esse livro de poemas chega repleto de imagens e de uma aura que é completamente arte. Natalia nos convida para uma jornada do mundo interno para o externo, e depois troca a ordem, construindo uma estética impressionante que vai atrair até mesmo quem nunca leu poesia.”

Pequeno guia de incríveis artistas mulheres: que sempre foram consideradas menos importantes que seus maridos – Beatriz Calil

“Quantas escritoras e artistas, quantas mulheres foram intencionalmente apagadas dos registros, da história e das prateleiras para que seus maridos, também escritores e artistas, pudessem alcançar o sucesso? Muitas até mesmo tiveram suas criações roubadas pelos homens com quem se relacionavam. E se você nunca ouviu essas histórias, mas quer conhecer o trabalho dessas mulheres e espalhar seus nomes, esse livro vai andar de mãos dadas contigo.” Clique aqui para comprar.

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