João Pedro, que gostava de pizza e igreja, morreu há um ano, e caso pouco avançou

O irmão de Rebeca, 5, adorava comer pizza portuguesa no shopping, ver o Neymar fazer gol e de ir à sua igreja evangélica. Ela sente falta dele. Às vezes, vê seu rosto na TV, em algum noticiário, por exemplo. “A reação dela muda”, diz o pai, Neilton Pinto, 41.

Rebeca faz a mesma pergunta sempre: “Papai, por que a polícia matou meu irmão?”. Neilton e a esposa, a professora Rafaela Matos, então, respondem que “foi um erro que eles cometeram e que agora o irmão dela tá com o papai do céu”.

Há um ano, no dia 18 de maio de 2020, João Pedro Matos Pinto foi jogar videogame na casa de um primo, no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo (RJ).

Três policiais civis, em operação conjunta com a Polícia Federal, rondavam a região de helicóptero. Do ar dispararam 29 vezes, como contaram depois, em depoimento. Um dos tiros de fuzil atingiu a barriga de João Pedro.

Ele foi colocado dentro da aeronave da Polícia Civil e levado até a capital do estado. Não resistiu e morreu. Tinha 14 anos e estava animado com a TV que o pai tinha comprado naquela mesma manhã, junto com uma cama para ele e a irmã caçula, no quarto que os dois compartilhavam. Faria 15 no mês seguinte.

O ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, citou a morte do adolescente quando a corte decidiu, em junho de 2020, restringir as ações policiais nas favelas do Rio a “situações excepcionais” durante a pandemia da Covid-19.

Nem toda a repercussão nacional bastou para dar respostas à família que teve o filho morto por uma ação do Core (Coordenadoria de Recursos Especiais). O órgão, tido como a “tropa de elite” da Polícia Civil, voltou às manchetes neste mês. Foi responsável pela operação mais letal da história do Rio, com um saldo de 28 mortes na favela do Jacarezinho.

Um ano depois, o caso João Pedro, segundo a Defensoria Pública do Rio de Janeiro, que atua em nome dos pais do rapaz, caminha devagar, quase parando.

“Ele está paralisado praticamente desde a reconstituição, em outubro, e desde então sequer o laudo [da simulação] ficou pronto”, afirma o defensor Rodrigo Lozoya. “Há uma série de irregularidades gravíssimas, como não preservação da cena do crime, destruição de provas, quebra da cadeia de custódia.”

Para Lozoya, a reabertura da investigação criminal pela Procuradoria “é uma medida que nos dá esperança de que o caso receba a devida atenção que merece”.

Ele se refere à volta do Ministério Público Federal ao tema. Havia dúvida jurídica se a investigação deveria ficar apenas nas mãos de promotores e da Polícia Civil, hipótese descartada em abril pela subprocuradora-geral da República Ela Wiecko de Castilho.

Em sua decisão, ela detalha a operação em São Gonçalo, que tinha como meta cumprir mandados de prisão de supostos líderes do tráfico local, integrantes do Comando Vermelho que atendiam por alcunhas como Faustão e Hello Kitty.

Pelo planejamento, caberia à Core dar cobertura aérea e terrestre às equipes da Polícia Federal. Em depoimento, o coordenador da Core à época, Sérgio Sahione Ferreira, disse que a casa onde João Pedro foi assassinado estava a “60 metros em linha reta da residência alvo do mandado”.

Agentes que estavam na porta direita do helicóptero teriam avistado “opositores armados que se deslocaram para uma área de mata nos fundos da casa alvo”, segundo Ferreira. Depois, reportaram ter visto um suspeito entrando no endereço onde os primos brincavam.

Dois meses após a morte de João Pedro, o delegado pediu para sair da chefia da Core. Lamentou não ter pedido desculpas ao pai do menino e disse que não conseguia mais dormir direito.

Em outubro, Ferreira participou da reprodução simulada do crime e, enfim, desculpou-se com o pai de João Pedro, conta Neilton. “Ele veio até minha pessoa, disse que não deu autorização para ninguém atirar, mais ou menos assim, e eu disse que o que me resta é perdoar. A fé que eu carrego… Não posso guardar mágoa porque isso só vai me fazer mal. Falei para ele ir em paz.”

“O ser humano não tem condição de perdoar ninguém, o perdão vem de Deus. Ele que ensinou a perdoar, seja quem que for”, afirma o membro da Igreja Evangélica Congregacional, onde João Pedro participava do grupo jovem. “Ele era bem esforçado na igreja, gostava de fazer as atividades, 100% gente boa.”

Perdoar, contudo, é diferente de deixar para lá, continua o trabalhador autônomo, que era motorista particular (levava duas crianças para a escola), mas perdeu o emprego na pandemia. “Deus é um Deus justo. Ele é de amor, mas também de justiça. A justiça tem que ter.”

Segundo Neilton, até o celular do filho a polícia apreendeu e não devolveu. “Era novinho, ele ganhou aniversário de 14 anos. Eu tava pagando ainda, parcelei em um ano.”

Os policiais envolvidos no caso continuam atuando na Core, “à disposição do titular”, segundo a Polícia Civil. A instituição diz ainda que a simulação da morte foi realizada de forma conjunta entre seus peritos e o Ministério Público, e que cada equipe ficou encarregada de elaborar um laudo específico.

“A Delegacia de Homicídios de Niterói, São Gonçalo e Itaboraí aguarda o resultado do exame realizado pelo MP para anexar ao inquérito”, diz em nota enviada à Folha.

Para concluir o procedimento policial, é necessário ainda esperar uma contraperícia de balística das armas apreendidas durante a ação, solicitada por defensores e promotores à Polícia Civil de São Paulo, afirma a equivalente fluminense.

O quarto dividido por João Pedro e Rebeca mudou de cor, conta seu pai. “Pintamos. Agora é rosa”, afirma Neilton. “A cama que comprei, que era para os dois, agora só a minha filha dorme nela.” Às vezes, Rebeca tem pesadelos.

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