Joel Zito Araújo: o cinema do real contra o racismo e a alienação das fake news

Enviado por / FonteC7nema, por Rodrigo Fonseca

O tema é o que pode haver de mais político nestes tempos de ódio: a amizade, que, na sua narrativa, une dois craques do samba. Mas em paralelo à sua imersão na lealdade, pelas vias da fábula, o realizador de “A Negação do Brasil” (2000) e de “Meu Amigo Fela” (lançado em Roterdão, em 2019, e laureado em Los Angeles, no Burkina Faso e Camarões) tem um mar de debates para navegar nas ondas da web. As suas reflexões hoje são disputadas nas mais prestigiadas instituições de ensino e de pesquisa, como a casa de Machado de Assis no Rio de Janeiro, a Academia Brasileira de Letras (ABL), e por universidades de todo o Brasil e do exterior.

Nesta sexta-feira, às 16h no Brasil (20h em Portugal), o cineasta – cada vez mais relevante como documentarista, mas sempre reverenciado pelo lírico melodrama “Filhas do Vento”, de 2004 – vai debater fake news com o crítico Fernão Ramos, no contexto das distopias de nosso tempo, no site https://cutt.ly/eiNR85d. A mediação será feita pelo professor da UniCamp Noel Carvalho. As estéticas do real vão ser dissecadas por Joel Zito, uma vez que elas formam uma das vertentes de uma filmografia iniciada pelo diretor em 1988. Uma trajetória audiovisual com os olhos bem abertos para os exercícios de intolerância do mundo, mas com os pés fincados na realidade de violências institucionais de sua pátria. Realidade que ele transforma ora em denúncia explícita (caso da longa-metragem “Cinderelas, lobos e um príncipe encantado”), ora em aulas de lirismo (como “São Paulo abraça Mandela”).

Qual é o papel político e qual é a dimensão poética do cinema documental nos tempos atuais? 

Joel Zito Araújo: O cinema documental vive numa espiral de expansão criativa. Ficou impossível falar e optar por géneros narrativos dentro dele, ou da fronteira dele com os géneros cinematográficos da ficção, o que é uma constante interessante e rica. Mas, na sua pergunta, vejo aqui resumido, dois aspetos que mais me encantam no documentário contemporâneo. São eles o documentário investigativo/político e o documentário poético. Há realizadores que combinam bem os dois. Eu acho que velhos géneros e métodos continuam com muita potência narrativa, e também política, como aqueles filmes classificados como cinema observacional, a exemplo dos documentários de Frederick Wiseman (do passado e do quase presente), ou um expressão contemporânea disto, como “Honeyland”, que fala mais da vida quotidiana. O meu trabalho em parceria com Megan Mylan, “Raça”, de 2013, foi por este caminho, a explorar o lado político. Mas amo demais os trabalhos que fluem como uma maior dimensão poética, especialmente os filmes de Agnès Varda. Ou aqueles que vivem num limite ténue entre poesia, ficção e documentário, como “Querido Diário”, de Nanni Moretti. Enfim, o cinema documental é cada vez mais um género incrível, cheio de potência política, poética, criativa, e é sempre uma galáxia em expansão. Eu, particularmente, valorizo mais quando o realizador se liberta da falsa noção de que está retratando a realidade e compreende muito bem que está tentando expressar o seu olhar sobre essa realidade. A SUA verdade.

Em 2000, com o filme “A Negação do Brasil”, mundialmente aclamado, você entra para a História do Cinema como um cronista da exclusão racial. Mas o seu cinema documental parece querer ir além desse tema e debater desconexões e afirmações que vão além de raça. Qual seria hoje a sua busca estética e ética no documentário? 

Creio que estou marcado para sempre como um comentador da questão racial brasileira, e agora mundial. Uso a palavra “marcado” sem nenhuma conotação negativa. Eu me descobri a fazer cinema, e expressando o meu olhar sobre a realidade, lidando com esta angústia que antecedeu minha entrada no cinema, que é a questão racial. O que eu quero com o “ir além” é mais no sentido de não ficar limitado às fronteiras do Brasil. Neste momento, estou particularmente ligado à África, e às conexões do Brasil com a África negra. Mas, seguramente, por mais cosmopolita que eu seja, ou tente ser, eu olho o mundo a partir do meu umbigo que é profundamente ligado ao fato de ser um afro-brasileiro. Especialmente em um momento como este, tão angustiante para todos nós nascidos no Brasil, e com amor pelo país e preocupado com o seu destino.Portanto, do ponto de vista ético, estou ampliando os horizontes, sem abandonar nada. Mas o ponto de vista estético é o mais difícil para eu comentar. Na verdade, gosto de experimentar formas narrativas. Não sou fiel a nenhuma delas. Acho que elas têm relação com o que você pretende narrar. Não invisto na construção de um método ou estética característica.

Como se dribla as fake news neste mundo mediatizado por redes sociais e como se transforma incerteza e suspeita em imagem numa narrativa documental?

Vixe!’ Eu diria que não temos um mundo que é mediatizado, mas, sim, “idiotizado” pelo casamento bem sucedido entre fake news e médias sociais. Parece que aquela frase subversiva dos anos 1970, que víamos pintados nos muros, “não compre jornais, invente a sua própria mentira”, associou-se à famosa frase hitlerista de Goebbels: “uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”. Associou-se e virou o conceito e o mantra das fake news. A extrema direita ressurgiu com toda força, porque eles se identificaram com este tipo de manipulação e se tornaram grandes mestres, assessorados pelo ex-estrategista de Trump, o Steve Bannon e a Cambridge Analytica. Parece que eles consideram o povo e a classe média um bando de idiotas. E se submetem prazerosamente às necessidades e interesses dos extremamente ricos. Para eles, importam o poder, o dinheiro, e o controle das massas. Não existe mais ética e respeito ao ser humano. Por trás das fake news existe apenas manipulação, movida pelo ressentimento, ódio, extremo conservadorismo, machismo, racismo, e uma reação à modernidade. Para eles, parece ser forte a ideia de que os fins justificam os meios. O Olavo de Carvalho (filósofo que cavou as bases teóricas do governo Bolsonaro no início de seu mandato) inspira-se, evidentemente, em Lenin e Trostky, mas defende o fundamentalismo cristão medieval. E eles compreenderam mais do que ninguém que o mais importante é controlar as narrativas, e se tornam mestres nisto ao saber usar as fake news.

Você virou um dos pilares documentais do Brasil, mas, ao mesmo tempo, você tem um trabalho sólido na ficção, coroado em “Filhas do Vento”. O que esperar agora de “O Pai da Rita”? Está filmado, montado?

Creio que estou no penúltimo ou último corte de “O Pai da Rita”. Eu gosto de montar meus filmes com um bom tempo de “decantamento”. Gosto de mostrar para os amigos e amigas, colher opiniões, trabalhar um novo corte e depois dar um tempo, o que chamo de “decantamento”, para depois voltar a ver as imagens e a narrativa com um certo frescor. “O Pai da Rita” está vivendo este processo. Creio que até outubro ou novembro terei o filme terminado. Trata-se de um filme amoroso. Uma história de uma grande amizade entre dois homens negros solteiros, celibatários, de baixa renda. São dois sambistas da escola de samba Vai-Vai, entrando na terceira idade. A amizade deles é profundamente balançada pelo surgimento de uma filha, que pode ser de um dos dois, ou de um terceiro. Quem sabe o Chico Buarque. É um filme na contramão das preocupações deste período. Acho que o melhor seria lançá-lo no ano que vem.

Que filmes documentais formaram o seu olhar?

São muitos, desde “Nanook”, Dziga Vertov, Chris Marker, Wiseman, Eduardo Coutinho, os irmãos Maysles, Jean Rouch, Herzog, Agnès Varda, Bodansky e Orlando Senna, os documentários políticos africanos de Jihan El-Tahri, até jovens contemporâneos como Fellipe Gamarano Barbosa, e o seu belo “Gabriel e a Montanha”. Agradeço também ao papel dos festivais nisto, como o É Tudo Verdade, do Brasil. Sou muito apaixonado e um observador de documentários. Ou seja, os documentários atuais continuam formando o meu olhar.

Que filmes sobre a identidade negra você acredita serem essenciais para um estudo de raça e de representação das populações negras?

Sem dúvidas, os afro-norte-americanos, afro-ingleses, e os africanos têm uma produção enorme e mais poderosa. Aqui eu teria uma lista enorme. Os filmes de Gordon Parks, Haile Gerima, Ousmane Sembene, Spike Lee, Ava DuVerney, Barry Jenkins, Steve MacQueen, John Singleton, Dee Rees, Julie Dash, Isaac Julien, John Akomfrah, Abderrahmane Sissako, Mahamat-Saleh Haroun. Eu escreveria pelo menos mais uma página citando eles e elas. Mas no Brasil ainda somos poucos.  Vou evitar nomes para não criar ciúmes. Mas nossos …

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