Manifestantes fizeram um ato na tarde desta sexta-feira (30), em frente ao Hospital Universitário, em Florianópolis, para pressionar a administração da unidade a devolver a bebê que foi retirada dos braços da mãe logo após o nascimento por determinação do Conselho Tutelar. Suzi, que nasceu com mais de 4.200 quilos, foi amamentada apenas no momento do nascimento pela mãe, e logo levada à UTI neonatal. A mãe reivindica o direito de amamentar a filha e protesta contra a retirada de leite para alimentação artificial. Integrantes do movimento negro e da população de rua denunciam que o caso Suzi é expressão de racismo institucional e violência obstétrica. Após a alta da jovem, que deve ocorrer neste sábado, a criança deverá ser levada para um abrigo.
“Estou muito abalada, me sinto muito humilhada, porque aqui era um hospital onde tinha desejo de ganhar minha filha. Desde que entrei na sala, já fui maltratada. O normal na cesárea é ganhar uma anestesia, eu ganhei cinco. Além de ouvir comentários em tom de chacota de que a minha bebê se tratava da bebê a ser levada”, relata ao Catarinas a mãe, Andrielli Amanda dos Santos, de 21 anos, por telefone. Mesmo na condição de internada no hospital, a jovem participou do ato.
Em nota ao Portal Catarinas, o Hospital Universitário Professor Polydoro Ernani de São Thiago da Universidade Federal de Santa Catarina (HU/UFSC) informou que, em 5 de julho, o Conselho Tutelar enviou ofício nº 056 destinado às maternidades de Florianópolis solicitando que fosse informado de imediato a internação da gestante. Em 28 de julho, dia da entrada da jovem, o Conselho foi informado. A conselheira responsável compareceu ao hospital e realizou o atendimento da paciente, comunicando a decisão da medida protetiva.
SUZI É ESPERANÇA
Suzi nasceu às 10h31 da manhã da última quarta-feira. Andrielle a segurou em seu colo e a amamentou durante algum tempo. Por volta das 13h, a filha foi afastada da jovem. “Eu não quero sair daqui sem ela nos braços porque foi muito difícil olhar todo dia para a minha estante e ver um monte de roupinha rosa. Em 2017 eu perdi uma filha, enterrei e me dói porque lembro dela. Então, veio a Suzi para me trazer esperança”, contou a mãe.
Durante a madrugada, a mãe com dores no peito, tentou amamentar a filha, mas teve o direito negado. “Eu estava com muita dor, meu peito estava me machucando, pedi para a moça da portaria, mas ela disse que a Suzi está proibida de receber visitas. A médica está pedindo para eu tirar o leite para alimentar a minha filha, mas eu não quero. Eu quero alimentá-la”.
Antes de perder a filha de vista, Andrielle foi informada pela conselheira do motivo da retirada da criança. “A conselheira tutelar alegou coisas do meu passado, porque em 2019 eu vivi em situação de rua e usei drogas. Sem querer saber se eu mudei ou não, como estava a minha condição de vida, como seria a vida dela agora”, conta.
O hospital também não liberou a criança para que o pai pudesse registrá-la oficialmente. Os avós paternos fizeram registro policial do impedimento de acessarem o bebê. “Eu não quero receber alta, se não puder sair daqui com a minha filha”, disse a mãe.
De acordo com o hospital, após a alta, a criança será acolhida institucionalmente, conforme decisão do Conselho Tutelar, previsto no artigo 101 do Estatuto da Criança e Adolescente. “Informações referentes às deliberações do Conselho Tutelar devem ser remetidas àquele órgão […]. Conforme previsto pelo Estatuto da Criança e Adolescente, respeitando o artigo 137, as decisões do Conselho Tutelar somente poderão ser revistas pela autoridade judiciária a pedido de quem tenha legítimo interesse”, comunicou.
VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA
A advogada Iris Gonçalves, acionada para a defesa da jovem, é enfática ao afirmar a responsabilidade do hospital em garantir o direito de mãe e filha de manterem vínculo, principalmente em relação ao aleitamento materno. “Por que um hospital referência nacional em parto humanizado está impedindo uma mãe de amamentar; que humanidade é essa?”, questiona.
A advogada recorre à Lei Estadual Nº 17.097, de 17 de janeiro de 2017, que dispõe sobre “implantação de medidas de informação e proteção à gestante e parturiente contra a violência obstétrica”. Entre as ações consideradas violência obstétrica, conforme caracteriza o artigo 3º, está “retirar da mulher, depois do parto, o direito de ter o bebê ao seu lado no Alojamento Conjunto e de amamentar em livre demanda, salvo se um deles, ou ambos necessitarem de cuidados especiais”.
Conforme relata, a assessoria da Promotoria da Infância e Juventude explicou se tratar de uma medida preventiva, prevista na legislação, para garantir a saúde da criança. “É um debate que precisa ser feito com o hospital, por que a maternidade do hospital está admitindo isso? A violência está sendo cometida pelo hospital, com base numa ordem de um Conselho Tutelar que não tem autoridade judiciária”, afirma.
DEFENSORIA VAI ENTRAR NO CASO
Procurados pela reportagem, a assessoria da Promotora de Justiça da Infância e Juventude e o Conselho Tutelar não se manifestaram por se tratar de segredo de justiça. Uma conselheira informou extraoficialmente ao Catarinas que, durante o período de pré-natal, não havia indicativo pela rede de apoio — que compreende o centro de saúde, família e pessoas próximas — de que a jovem pudesse garantir cuidados à filha.
Ainda conforme explicou a fonte, o conselho é um órgão autônomo, ou seja não necessita de determinação judicial para decidir e aplicar medidas protetivas. A jovem gerou quatro crianças, teve destituído o poder familiar de duas delas, e uma faleceu ainda bebê. O fato dela ter sido usuária de drogas e moradora de rua durante um período da sua vida pesou na decisão do conselho.
Acionado pelo Portal Catarinas, o Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina (Nudem/SC) instaurou processo para apurar a situação, em paralelo à atuação da advogada. Anne Teive, defensora titular do Nudem, informou que, ainda nesta sexta-feira, expediu ofícios ao Conselho Tutelar e ao Hospital, requisitando esclarecimentos e providências. A defensora orientou à advogada do caso a impetrar habeas corpus ou mandado de segurança com urgência. Em tese, os núcleos não atuam em casos individuais, mas vão assumir esse caso por considerarem de repercussão coletiva.
RACISMO INSTITUCIONAL
O nome de Suzi é uma homenagem feita por Andrielle à amiga Suzi, mulher preta e com trajetória de rua, que morreu recentemente, por negligência do Estado, como afirmam integrantes dos movimentos sociais.
“Na senzala, levavam as nossas crianças. Daí, os nossos seios, cheios de leite, foram romantizados, e vejam só, nos chamaram de mães de leite, de mães pretas, apesar das nossas crianças ancestrais terem sido vendidas, sequestradas”, escreveu em suas redes sociais a professora e intelectual Jeruse Romão.
A retirada da filha dos braços da mãe é considerada por movimentos sociais que respaldam Andrielle como um sequestro pelo Estado baseado em racismo institucional. “E para quem eles vão entregar a criança? Conhecem a história da mãe? Da luta dela esperando essa criança? E uma mãe pobre, jovem, negra, sozinha na maternidade depois que fez uma cesárea e sem a filha nos braços, não merece o nosso silêncio”, denuncia Romão, que é autora do “Antonieta de Barros: Professora, Escritora, Jornalista, Primeira Deputada Catarinense e Negra do Brasil”.
Andrielle afirmou ter uma rede que a apoia desde o início da gestação. Além de Romão, a rede de proteção conta ainda com Kaionara dos Santos, assistente social, e Gabriel Amado, psicólogo militante do movimento da população de rua, que acompanhou a jovem durante o parto.
“Por que não ouviram ninguém? A quem interessa essa violência? Fazem isso desde a escravidão. Racismo. Não vamos aceitar. O Estado tem obrigação de apoiar a mãe. Ela não está doando a criança. Ela precisa dos direitos para cuidar da filha: trabalho, moradia, assistência social, saúde, creche. Tudo isso é direito constitucional”, aponta Romão.
Foto em destaque: Reprodução/ Catarinas