Jovens portugueses quebram tabu e debatem passado escravocrata de suas famílias

“Os meus antepassados não só foram traficantes de escravos, como foram um dos maiores traficantes de escravos de Angola. O brasão da minha família ainda está no museu da escravidão em Luanda”, admite, sem eufemismos, a jornalista portuguesa Catarina Demony, 28.

Embora Portugal e muitas famílias portuguesas tenham tido um papel relevante no comércio e exploração de africanos, relatos diretos como o dela ainda são exceção no país, e a admissão de experiências familiares com a escravatura permanece um tabu.

Recentemente, porém, jovens portugueses têm usado diferentes estratégias para quebrar o silêncio. Entre newsletters, conferências, lives nas redes sociais e um documentário, eles debatem um passado muitas vezes incômodo para seus familiares.

“O que me parece é que a escravatura foi uma das raízes dos problemas de racismo que nós temos hoje na sociedade portuguesa. Se nós não falarmos de uma forma direta e não formos à raiz do problema, as coisas não vão mudar”, diz Catarina, que partiu das experiências da família para fazer um documentário.

Segundo ela, a descoberta de que seus antepassados maternos tiveram um papel importante no comércio de pessoas escravizadas surgiu em conversas com a avó, há cerca de quatro anos.

“Eu sempre soube que eles [família materna] tinham uma vida abastada em Angola, que viviam bem, tinham empregados, motoristas, cozinheiros. E uma das perguntas que eu sempre fiz era:
de onde veio esse dinheiro?”

A ideia de transformar a experiência familiar em documentário, segundo a jornalista, tem como um dos objetivos ajudar a fomentar a discussão em outras famílias e promover o debate também entre jovens e estudantes.

“Uma das razões pelas quais as famílias não falam sobre este assunto é porque as pessoas têm vergonha. Então, eu não estou fazendo o documentário numa perspectiva de vergonha, mas sim de aprendizagem, de abrir uma conversa para falarmos sobre o assunto”, diz.

Batizado de “The Old Us”, o filme tem lançamento previsto para dezembro. Além de relatos de ativistas e historiadores, reúne depoimentos de outros jovens que se defrontam com histórias familiares relacionadas à escravidão.

A responsável pelo documentário diz ter encontrado um ponto em comum entre os entrevistados: “Todas as pessoas com quem conversei sempre tiveram boas condições financeiras e acesso a boas universidades. Muitas estudaram no exterior”.

“As pessoas vivem em uma almofada de privilégios devido à escravatura. Não diretamente, porque o dinheiro que está agora não veio da escravatura. Mas vivem indiretamente, porque o dinheiro foi dando oportunidades de geração a geração, até chegar aos dias de hoje”, diz ela.

Foi justamente uma reflexão sobre os próprios privilégios que fez Nuno Viegas, 22, querer investigar o passado familiar. “Eu nasci nos Açores, e 87% dos açorianos nunca puseram os pés em uma universidade.

É a região do país com a pior taxa de acesso ao ensino superior, mas todos os meus familiares têm diplomas. Cresci rodeado de médicos e enfermeiros”, relata.

Ao levantar o assunto da escravidão entre seus familiares, ele diz que sempre ouviu respostas negativas. Pouco convencido, resolveu investigar por conta própria. “Eu desconfiei e fui pesquisar. Pensei que talvez tivesse de ir procurar na Torre do Tombo, onde se guardam os arquivos históricos em Portugal, mas não, está tudo online. Foi incrivelmente fácil”, diz.

Em registros públicos, o jovem identificou a participação da família no comércio de pessoas escravizadas. Além de documentos referentes ao arquipélago dos Açores, ele também comprovou que os antepassados exploravam escravos no Brasil, principalmente no estado de São Paulo.

O resultado da investigação foi compartilhado com os parentes não em um almoço de família, mas em uma newsletter pública com um título provocativo: “Ainda vivo às custas dos escravizados pela minha família”.

O texto de opinião foi publicado no portal Fumaça, referência em mídia independente em Portugal. O sucesso com os leitores, porém, não evitou o climão com a família. “Devo dizer que não apreciaram”, diverte-se ele, que reforça considerar fundamental falar sobre o tema.

Viegas, que se diz de direita, lamenta que o combate ao racismo e a discussão sobre o passado escravocrata do país estejam concentrados nos partidos de esquerda.

Também defensora de um diálogo aberto sobre o passado escravocrata dos familiares, a professora Ana Esteves, 30, lamenta não ter conversado com os avós, que já morreram, sobre o assunto.

“Descobri que minha família teve muitos escravos um pouco por acaso. Na aldeia da minha família há uma rua com o nome do meu trisavô. Nunca liguei muito para isso, mas um dia tive curiosidade de pesquisar mais sobre ele e o período em que viveu na África. Não foi um choque, mas também não foi fácil”, relata.

Embora diga que não tenha abertura para falar com os familiares sobre o assunto, Ana conta que pretende no futuro discutir o assunto com os filhos, hoje com 4 e 6 anos. Enquanto isso, compartilhou suas experiências em uma transmissão no aplicativo Clubhouse.

Além dos relatos pessoais, há outros indícios de uma maior abertura da sociedade para falar sobre o tema. Em Lisboa, os moradores escolheram, dentro do orçamento participativo do município, a construção de um memorial sobre a escravidão.

A instalação, assinada pelo angolano Kiluanji Kia Henda, ficará em uma das zonas mais turísticas da cidade. A questão agora é saber quando isso vai acontecer. Inicialmente prevista para o primeiro trimestre, a obra está atrasada.

O historiador Arlindo Manuel Caldeira, pesquisador da Universidade Nova de Lisboa, destaca que, apesar do papel central de Portugal no tráfico de escravos, o tema ainda tem um certo distanciamento para a sociedade portuguesa, como se fosse algo restrito às colônias.

A longa ditadura no país (entre 1926 e 1974) também tratou de evitar qualquer opinião crítica sobre a escravidão.

“Era uma ditadura que dava uma importância grande para as colônias, que tinha censura, que controlava o ensino. Isso fazia com que o regime tentasse ocultar tudo o que parecia obscurecer o seu destino colonial. Tanto que ainda se difundiu a ideia de que a escravidão portuguesa não foi igual a de outros países, que era muito mais suave, que o relacionamento era muito mais amistoso”, afirma.

Oficialmente, Portugal proibiu a escravidão por meio de uma lei do marquês de Pombal, em 1761, sendo um dos pioneiros no mundo. A decisão determinava a libertação das pessoas escravizadas após a chegada ao território português. As leis não valiam, no entanto, para as colônias. .

“O Marquês de Pombal, ao mesmo tempo que proibiu a escravidão aqui, criou companhias de transportes de escravos para o Brasil, para introduzir escravos em áreas que se considerava que o comércio não estava a abastecer suficiente. Não há nessas leis nenhuma intenção de acabar com a escravidão”, diz Caldeira.

Na avaliação do historiador, a discussão do passado familiar pode ter repercussões positivas. “No fim, todos nós somos descendentes de escravos ou de traficantes de escravos, e às vezes de ambos.”

Nos últimos anos, as tensões sobre o passado colonial têm se intensificado, inclusive com propostas para a remoção de símbolos e monumentos ligados à colonização. As queixas de discriminação étnico racial também têm aumentado, e o censo de 2021 foi criticado por não perguntar a raça dos residentes no país.

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