Juíza não recebe denúncia, e promotora vai reanalisar caso de mulher negra pisada no pescoço por PM em SP

Enviado por / FontePor Léo Arcoverde, do G1

É a primeira vez que a Justiça se manifesta após reviravoltas; dona de bar vítima de violência policial não responderá a processo por ora. Promotora fará reanálise da ocorrência e não tem prazo para oferecer novo parecer à 2ª Vara Criminal do Foro Regional de Santo Amaro, na Zona Sul de SP.

juíza Alessandra Regina Ramos Rodrigues Bisognin, da 2ª Vara Criminal do Foro Regional de Santo Amaro, na Zona Sul de São Paulo, não recebeu a denúncia baseada em quatro crimes oferecida contra a mulher negra pisada no pescoço por um policial militar em Parelheiros em maio de 2020.

A ação, registrada com um celular por uma testemunha, foi revelada pelo “Fantástico”, da TV Globo.

A magistrada atendeu a um pedido feito pela promotora Flavia Lias Sbogi, que havia denunciado a mulher, vítima de violência policial, por 4 crimes. Mas a promotora voltou atrás na decisão e pediu para Justiça não receber a denúncia, pois o vídeo divulgado pelo Fantástico trazia novos elementos que não eram conhecidos na época, segundo ela disse à Justiça.

Em um despacho, a juíza decidiu: “Em atenção ao requerimento (…), deixo, por ora, de receber a denúncia, deferindo nova vista à d. Promotora de Justiça para melhor análise dos autos”, diz o despacho.

Reportagem da GloboNews e do G1 mostrou que, dias antes desse pedido, a promotora denunciou a mulher por quatro crimes: infração de medida sanitária preventiva, desacato, resistência e lesão corporal. Em processo na Justiça Militar, porém, PMs são réus por lesão corporal e abuso de autoridade.

É a primeira vez que a Justiça se manifesta sobre o caso desde que, na semana passada, houve a primeira reviravolta acerca da ocorrência, quando a promotora juntou ao processo sua denúncia contra a vítima de violência policial e dois homens, que estavam em seu bar quando uma equipe da polícia militar se dirigiu ao local em maio de 2020.

O despacho da juíza é do dia 22 de outubro mas a reportagem só teve acesso agora ao seu conteúdo.

O que acontece agora

O Código de Processo Penal não determina um prazo para que as pessoas envolvidas nesse caso sejam denunciadas ou não. Todas as pessoas que participaram dessa ocorrência – tanto policiais militares quanto civis – respondem a acusações mútuas em liberdade.

Ou seja, por enquanto, a mulher negra não responde a nenhum processo criminal em razão dessa ocorrência.

Na avaliação do advogado e presidente do Grupo Tortura Nunca Mais, Ariel de Castro Alves, a decisão da magistrada é acertada. “Houve um recuo da promotoria de Justiça, diante da repercussão negativa do caso e também já houve, aí, uma pré-avaliação da juíza com relação ao não acatamento daquela denúncia do Ministério Público contra a mulher”.

Promotora muda de ideia em 2 dias

Dois dias após oferecer denúncia contra uma mulher, a promotora mudou de ideia e pediu à Justiça que não receba a denúncia.

No pedido juntado ao processo, Sbogi disse que tomou conhecimento, por meio da reportagem publicada pelo g1 e GloboNews, de uma denúncia já oferecida à Justiça Militar contra os policiais militares que participaram da ação, que ela considera como “fatos novos” no caso

Vídeos revelados, em julho de 2020, pelo Fantástico, da TV Globo, mostram a ação dos policiais militares agressiva no episódio.

No documento protocolado na Justiça, a promotora solicitou mais tempo para reanalisar o caso antes que processo criminal contra mulher agredida por policial seja aberto.

“Considerando que a denúncia ainda não foi recebida e a existência de fatos novos, requeiro nova vista dos autos para melhor análise”, afirmou Flavia Lias Sbogi.

A denúncia na Justiça Militar contra os PMs e mencionada pela promotora é de junho deste ano.

O advogado de defesa da mulher agredida, Felipe Morandini, afirmou por meio de nota que “os fatos noticiados são notórios, tendo sido noticiados pela primeira vez na metade do ano passado, de modo que é impressionante que deles se alegue desconhecimento”.

“Não se pode transferir à defesa o trabalho investigativo (da polícia judiciária) e o probatório (da acusação), sob pena de fazer sucumbir integralmente os princípios basilares do processo penal democrático. Os fatos noticiados são notórios, tendo sido noticiados pela primeira vez na metade do ano passado, de modo que é impressionante que deles se alegue desconhecimento”, afirmou.

“A defesa vê com bons olhos a tentativa por parte da D. Promotora de Justiça em fazer o que é certo (que é o que se espera de qualquer pessoa que ocupe esta posição), mas repudia os ataques diretos feitos contra si pela via processual”, completou Morandini.

O MPSP, por meio da 5ª Promotoria de Justiça Criminal de Santo Amaro, “informa que somente um dia após oferecer denúncia contra a Sra. Elisabete Teixeira da Silva, em 19 de outubro, tomou conhecimento do vídeo mencionado na matéria veiculada no portal g1, até então estranho aos autos.

Ante os fatos, a promotora de Justiça, de ofício, confirmou, junto à Promotoria de Justiça Militar, a existência da Ação Penal movida na Justiça Militar em face dos policiais militares e, nesta sexta-feira (22/10), solicitou à juíza da 2ª Vara Criminal do Foro Regional de Santo Amaro a devolução dos autos, para reanálise dos elementos de prova, considerando o novo contexto probatório trazido ao conhecimento da promotora de Justiça oficiante, para ratificação ou retificação da denúncia, requisição de diligências, ou promoção de arquivamento.”

Vítima denunciada

Na denúncia de quatro páginas, oferecida na terça (19) e obtida pela GloboNews, a vítima era acusada de quatro delitos: infração de medida sanitária preventiva, desacato, resistência e lesão corporal (neste caso, os policiais militares são as vítimas das agressões).

Caso a juíza da 2ª Vara Criminal do Foro Regional de Santo Amaro, na Zona Sul, aceite o pedido feito pela promotora nesta sexta (22), ela poderá reanalisar o caso antes de tomar uma nova decisão. Em seguida, ela poderá oferecer uma nova denúncia contra as pessoas envolvidas na ocorrência em Parelheiros ou solicitar o arquivamento do caso.

Em entrevista ao Fantástico, na época do caso, a vítima relatou: “Quanto mais eu me debatia, mais ele apertava a botina no meu pescoço”.

No depoimento, ela também citou o caso de George Floyd, homem negro assassinado em Minneapolis no dia 25 de maio de 2020, estrangulado pelo policial branco Derek Chauvin.

“”Achei que iria ser morta como ele [George Floyd]. Eu estava no chão e lembrava daquela cena dele. Achei que iria morrer ali”, disse a mulher, naquela ocasião, ao programa Encontro, também da TV Globo, lembrando do caso do norte-americano negro morto por policiais durante uma abordagem em maio de 2020.

O caso foi noticiado até fora do país. À época, o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), declarou que reprovava a ação dos policiais descrita pela reportagem.

Em processo na Justiça Militar, porém, os PMs são réus por lesão corporal, abuso de autoridade, falsidade ideológica e inobservância de regulamento. Eles respondem pelos crimes em liberdade. Estão afastados das atividades de rua, trabalhando internamente na corporação.

O caso decorre do fato de o Ministério Público Estadual entender que a ocorrência em Parelheiros consistiu em um caso de desrespeito às normas sanitárias em que a mulher negra e outros dois homens desacataram e até agrediram os policiais militares.

Ocorre que esta versão, dada pelos próprios policiais no dia da ocorrência, e, portanto, antes de os vídeos virem à tona, já tinha sido apresentada no 25° Distrito Policial (Parelheiros).

Com um agravante: os policiais – dois agentes – foram denunciados pelo mesmo MP Militar por terem, na avaliação da Promotoria de Justiça, mentido na delegacia.

A denúncia do MP Militar contra os dois policias é de junho deste ano e os acusa também por quatro crimes: lesão corporal, falsidade ideológica, abuso de autoridade e inobservância de regulamento.

Esses policiais nunca foram presos em razão de envolvimento nesse caso.

Análise

Na avaliação do advogado Felipe Morandini, que defende a mulher negra vítima de violência policial, a denúncia da terça-feira (19) era causa perplexidade.

“Em acompanhamento processual, para minha surpresa e estarrecimento, recebi a notícia de que minha cliente foi denunciada pelos crimes de infração à medida sanitária preventiva, desacato, resistência e lesão corporal em face dos Policiais Militares que a agrediram, de forma brutal”, disse Morandini.

“Mesmo após a notícia ter se espalhado o mundo, e causado revolta em todos, a mesma foi ignorada pelo membro do Ministério Público, que se baseou nas informações do Boletim de Ocorrência. Ignorou as imagens que foram noticiadas, e são de conhecimento público. Trabalharei incansavelmente pela defesa da comerciante, e principalmente, para que esta denúncia seja rejeitada pelo juízo. Não é (e não pode ser) possível que fatos notórios como estes sejam ignorados pelo Órgão Ministerial no momento de denunciar qualquer um que seja”, concluiu o defensor.

O professor da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP) e integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) Rafael Alcadipani criticou a denúncia. “É preciso que seja feita uma investigação para se ver se a senhora, naquela circunstância, havia cometido algum crime, mas com evidências, imagens, não apenas depoimento do policial. O que parece, neste caso, infelizmente, é que a Justiça, o MP e a PM, e a PC, se organizam numa forma de atacar uma pessoa que foi vítima de uma brutalidade policial. E essa é uma história cotidiana no nosso Brasil.”

GloboNews questionou diversos órgãos sobre a denúncia oferecida contra a mulher agredida pelo policial militar.

Por meio da assessoria de imprensa do Ministério Público do Estado de São Paulo, questionamos se a promotora autora da denúncia, Flavia Lias Sgobi, quer se manifestar sobre isso. Aguardamos a reposta da representante do Ministério Público.

A Secretaria Estadual da Segurança Pública informou por meio da nota que “o caso foi investigado por meio de inquérito policial pelo 25º DP e relatado à Justiça Militar com indiciamento de um autor por abuso de autoridade”. Disse ainda que “os dois policiais envolvidos seguem afastados da atividade operacional e respondem a um Inquérito Policial Militar”.

Já o Tribunal de Justiça de São Paulo informou “não emite nota sobre questão jurisdicional”. “O caso está em andamento. No último dia 19 foi oferecida denúncia pelo Ministério Público e os autos aguardam decisão sobre o recebimento ou não dessa denúncia.”

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