Juristas negras e a luta por espaços no mundo do Direito

Se os desafios de uma mulher para ocupar espaços de poder e saber já são enormes no Brasil, para uma mulher negra, eles se impõem com uma dimensão ainda maior. E, quando o recorte é o universo do sistema judiciário, o quadro de exclusão se apresenta de forma mais evidente. Para contribuir com a visibilidade que o mês de junho propõe para as mulheres negras – 25 de julho marca o Dia da Mulher Afro-latino-americana e Caribenha – cabe observar como o racismo estrutural no ambiente do Direito ainda atinge essas mulheres, ouvir e amplificar suas vozes.

A primeira barreira para essas mulheres não poderia ser outra: a escolaridade. A taxa de analfabetismo das mulheres negras (14%) representa mais do que o dobro das brancas (5,8%), segundo o IBGE. Como acontece com a população negra, elas têm maior dificuldade de acessar universidades e, consequentemente, os espaços de conhecimento e o mercado de trabalho ficam mais distantes. Isso se reflete na baixa representatividade em cargos elevados do setor privado e também no serviço público.

Na advocacia e magistratura e no sistema judiciário, essas distorções podem ser comprovadas em dados estatísticos. No Supremo Tribunal Federal, é emblemático que apenas três negros tenham integrado a corte em toda a história: os ministros Joaquim Barbosa, indicado pelo ex-presidente Lula, em 2003; Hermegenildo de Barros, nomeado em 1919 e aposentado em 1937; e Pedro Lessa, ministro entre 1907 e 1921. Mulher negra nunca houve na Suprema Corte.

Nos Tribunais Superiores – Superior Tribunal de Justiça (STJ), Supremo Tribunal Federal (STF), Tribunal, Superior do Trabalho (TST), Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e Superior Tribunal Militar (STM) – essa baixa representatividade é explícita: 1,3% se declaram pretos e 7,6%, pardos, segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que realizou o Censo Judiciário no ano de 2018 com 11.348 magistrados (62,5%), de um total de 18.168 juízes, desembargadores e ministros dos tribunais superiores. A maioria dos entrevistados se declarou branco (80,3%) e apenas 18% negro. Há outros dados expressivos sobre essas desigualdades de gênero e raça no Perfil Social Demográfico feito pelo CNJ, em 2018.

“Todos esses ambientes são predominantemente compostos por homens brancos, são poucas mulheres que têm espaço e as mulheres negras são raríssimas”, constata a procuradora federal, professora e acadêmica de Direito Chiara Ramos. Ela chama a atenção para dados ainda mais excludentes. Na Procuradoria Geral Federal, por exemplo, apenas 2,3 % de mulheres negras exercem o cargo de procuradora ou de servidora do órgão. “Eu mesma só conheço duas além de mim, numa carreira numerosíssima de mais de cinco mil membros”, pontua. Além disso, apenas 2% dos cargos da Advocacia Geral da União são ocupados por mulheres negras. Na magistratura federal, só 5,1% dos cargos. E, no Ministério Público Federal, não há mulheres que se declarem negras.

Para ajudar a mudar esse quadro de desigualdade de gênero e raça, Chiara Ramos se uniu a outras mulheres para criar a Abayomi – Juristas Negras. “Fui atrás da Comissão de Igualdade Racial da OAB de Pernambuco, conheci mulheres negras incríveis e, a partir daí, comecei a perceber a realidade da advocacia pernambucana para a mulher negra. Se elas forem mulheres negras conscientes de raça e que ostentam o seu cabelo black power e as suas tranças e que não tentam se embranquecer, não são aceitas nos escritórios de advocacia. São frases como ‘a sua estética não combina’, ‘seu cabelo tá bagunçado, ‘você tem que alisar o cabelo’ e essas violências acontecem cotidianamente”, relata a procuradora. Ela conta que frases como essas motivaram uma campanha nas redes sociais com o tema “frases racistas no mundo jurídico”, para questionar essas opressões no ambiente do Direito.

“Hoje eu ocupo algumas posições que são de muita solidão para a mulher negra. Cansei e cheguei a adoecer. O racismo adoece. Ele traz efeitos psicológicos muito danosos, sobretudo para a mulher negra nesse contexto nas estruturas institucionais nas quais estamos inseridas e que nos violentam cotidianamente com posturas racistas e machistas e com opressões que se sobrepõem. Sem a pluralidade no sistema de Justiça, não há Justiça”, afirma Chiara.
Para aplicar seus 12 anos de experiência na magistratura e no ensino, Chiara decidiu desenvolver uma metodologia que hoje é aplicada pela Abayomi, pensada para que advogadas não inseridas no mercado de trabalho pudessem ter uma preparação para concursos públicos, incluindo o exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). “O que começou na minha casa, com 12 pessoas, hoje atende mais de 100 pessoas do Brasil inteiro”, conta a procuradora.

Débora Gonçalvez foi uma das primeiras a utilizar o método de Chiara, em Roraima, antes de se tornar uma das juristas negras e co-fundadoras da Abayomi. A procuradora foi sua mentora quando ela estava no fim da graduação em direito. Utilizando seu método, Débora conseguiu passar na OAB, ainda no 9º período. Após se formar e pegar sua carteira da ordem, conheceu Juliane Lima, que viria a ser a primeira a presidenta da Comissão de Igualdade Racial da entidade, em 2018. Junto com Chiara, foi convidada a fazer parte da nova Comissão que estava sendo formada. “Lá conhecemos as nossas irmãs de vida que formam a Abayomi”, lembra Débora, que hoje é vice-presidente da Comissão.

A iniciativa da Abayomi, que não tem fins lucrativos, conseguiu financiamento do Fundo Baobá (Programa de Aceleração de Lideranças Marielle Franco e foi aprovada recentemente como uma das organizações encubadas entre os programas de empreendedorismo do parque tecnológico – Mind The Bizz, do Porto Digital, o que garantiu o acesso a bolsas para alunas do projeto, muitas oriundas do Prouni e moradoras de regiões periféricas. “Para pagar bolsas para que algumas continuem estudando. Existem algumas juristas que realmente ficam prejudicadas, porque, às vezes, têm que se submeter a trabalhar em telemarketing, por exemplo. Hoje temos oito bolsistas. Para manter essas bolsas, precisamos de recursos. Dessas pessoas muitas são advogadas, algumas já com mestrado, muitas que possuem pós-graduação ou que tentam atuar na advocacia privada mas sonham em exercer um cargo público”, explica. Para conhecer sobre o método, acesse https://www.abayomijuristasnegras.com.br/

Além de Chiara Ramos, a Abayomi é integrada pelas juristas Manoela Alves, Lígia Verner, Débora Gonçalves, Patrícia Oliveira, Juliana Lima e Sabrina Santos e pela comunicadora Gabriela Tanabe. “Mulheres brilhantes que não tinham oportunidades de efetivamente ingressar no mercado de trabalho por um motivo comum, qual seja o racismo em razão da cor da nossa pele e das nossas características que não se adequavam ao estereótipo branco da advocacia. Somos excluídas e, muitas vezes, nem somos reconhecidas como advogadas nos espaços. Foi aí que Chiara nos convidou para formamos um grupo de mulheres negras para estudar para concurso público utilizando a sua metodologia para que pudéssemos ingressar nos espaços de poder e saber. Essa união mudou as nossas vidas”, destaca Débora.

Primeira Conselheira negra na OAB-PE

Entre as juristas da Abayomi, Manoela Alves, que preside a Comissão de Igualdade Racial da OAB de Pernambuco, foi além e se tornou a primeira mulher negra a integrar o Conselho da entidade em 87 anos. Ela é a única negra no colegiado, que tem caráter deliberativo. “Não existe outra mulher negra e não existe outra pessoa negra no Conselho. O fato de ter sido a primeira conselheira negra mostra que a OAB começa a abrir oportunidades para outros públicos e confirma o seu compromisso com a pluralidade”, destaca Manoela. “É de extrema importância a minha entrada, é simbólica e serve para fortalecer e estimular a chegada de outras mulheres negras, para que a gente comece a se empoderar dando uma mensagem que esse espaço também é nosso”, frisa.

Segundo ela, o fato de ser a única negra no conselheira negra também reforça que a OAB precisa repensar a sua representatividade nos espaços de poder e nas suas comissões, e traz a reflexão sobre o conceito da ‘síndrome da negra única’.

“Quando a gente fala síndrome da negra única, a gente precisa perceber que muitas vezes isso pode servir como uma tática da branquitude. Dar o espaço para uma única pessoa negra para não dizer que não tem preta e preto no espaço e isso silencia qualquer outra discussão sobre a inclusão naquele espaço. As pessoas que são colocadas nesses espaços são estratégicas. Só se você tiver consciência racial e conseguir fazer a leitura política do racismo estrutural e conseguir perceber o quanto de dificuldade existe dentro de uma cultura racista, você consegue entender a sua responsabilidade toda vez que ocupa um espaço, principalmente como negra única”, argumenta Manoela. “Fazemos parte de coletivos de juristas negras por todo o Brasil para se apoiar e criar uma grande corrente, para que mais de nós possa estar acessando esses espaços”, conta.

O presidente da OAB-PE, Bruno Baptista, destacou a entrada de Manoela no Conselho. “Na atual gestão, trabalhamos para que a OAB-PE tivesse uma representação negra no conselho. A conselheira Manoela Alves assumiu o cargo em 2019 e é a primeira conselheira negra da história da OAB-PE. Também fortalecemos e ampliamos o trabalho da Comissão de Igualdade Racial, com eventos, ações de conscientização e visibilidade e apoio à causa. Criamos, de forma pioneira, o comitê de representatividade da OAB-PE que é justamente para avaliar, monitorar e propor ações, visando a democratização dos nossos espaços, nos eventos e nos cargos de representação segundo critérios como gênero, raça e as minorias. Estamos trabalhando no projeto de um censo para identificarmos quantos advogados e advogadas negros temos na OAB-PE”, afirmou Baptista.

“O preconceito é inegável e decorre do racismo estrutural que temos na sociedade. A política de cotas, especialmente nas instituições de ensino superior, tem exercido um importante papel e hoje vemos muito mais advogadas negras e advogados negros do que víamos anos atrás. São passos importantes que estamos dando neste um ano e meio de gestão, concluiu o presidente da OAB-PE.

Mulheres negras no Legislativo

A advogada e co-deputada do mandato das Juntas (PSOL) Robeyoncé Lima é uma liderança emblemática não só do combate ao racismo, ao machismo e à transfobia no ambiente jurídico, mas também no Legislativo. Além de mulher negra, sua transexualidade traz mais um preconceito a ser superado. “É um tabu. Ninguém fala nada, é mais informal. É um contexto predominantemente de homens brancos. O racismo estrutural é uma realidade, não tem como negar. Mas é um racismo sutil. Nesses ambientes formais, não se fala sobre isso. Chega-se até a dizer que racismo não existe e que somos uma democracia racial e que todos são iguais, mas vamos ver quem a bala da polícia vai pegar primeiro”, ironiza Robeyoncé.

“Não me sinto representada por esse Congresso Nacional em que 85% são de homens brancos. Que representatividade é essa? Muitas câmaras municipais não tem nenhuma mulher, que dirá uma mulher negra”, aponta. Segundo a parlamentar, o fato de três representantes das Juntas serem as únicas mulheres negras no plenário (Robeyoncé, Jô Cavalcanti e Kátia Cunha) é uma reparação histórica. “Estar num lugar onde a gente sempre deveria ter estado e nunca esteve. É um sistema que, há mais de 500 anos, exclui os homens e as mulheres negras. Quando a gente chega numa Assembleia Legislativa, por exemplo, que foi construída há mais de 180 anos e por nossos ancestrais, inclusive, vemos que a gente não está mais lá para construir paredes”, afirma.

Racismo em pauta

Manoela Alves é presidente da Comissão de Igualdade Racial e primeira integrante negra do Conselho da OAB-PE (Imagem retirada do site Folha de Pernambuco)

“Infelizmente, a gente tem um racismo estrutural e um patriarcado e uma cultura misógina que acaba por reverberar em todos os espaços, inclusivo na dificuldade das mulheres ocuparem espaços tanto de poder quanto de saber. E o sistema de justiça é um desses espaços onde as mulheres estão em processo de ocupação de cargos públicos. Esse é um processo político e de construção que tem sido feito pelas mulheres”
Manoela Alves

Chiara Ramos, procuradora federal, professora de Direito e acadêmica (Imagem retirada do site Folha de Pernambuco)

“Muitas das que estão nesse sistema estão silenciadas e embranquecidas; ou seja, sem a consciência da sua posição enquanto mulher negra nesses espaços, uma coisa muito comum de acontecer, terminar perdendo sua identidade. É isso que o racismo estrutural faz com a gente desde a educação de base”
Chiara Ramos

Débora Gonçalves, vice-presidente da Comissão de Igualdade Racial da OAB-PE (Imagem retirada do site Folha de Pernambuco)

“Quando a gente fala que vivemos em um país que é estruturalmente racista, estamos falando do silenciamento que é dado sobre a pauta racial. Hoje é que estamos podendo falar sobre esse assunto, mas, por muitos anos, nem se falava sobre isso, apenas se excluía. O preconceito sabe a cor”.
Débora Gonçalves

(Imagem retirada do site Folha de Pernambuco)

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