O Rio tem despertado mais uma vez o interesse pela necessidade de representatividade de quem faz acontecer a vida cotidiana da cidade e ainda assim vive à margem da invisibilidade. Posso dizer com propriedade que setembro foi um dos meses mais ativos do ano. Muitos lançamentos, inicio de projetos, renovações e recomeços.
Por Gessica Justino Do Coletivo Oba
Dentre esses tivemos no dia 12 o lançamento do filme Kbela sob direção da Yasmin Thayná no Cinema Odeon.
KBELA: uma experiência audiovisual sobre ser mulher e tornar-se negra. Fotos © www.stephmunnier.com
KBELA é um curta-metragem experimental realizado de forma colaborativa por mulheres negras sobre mulheres negras. Seja através do cinema ou através dos cabelos, essas mulheres têm em comum a busca por novas possibilidades para narrar suas histórias em diferentes campos onde machismo e racismo são obstáculos a serem superados.
O processo de produção do filme é baseado nas redes de afeto e da internet o elenco foi convocado nas redes sociais para garantir a diversidade de personagens que também colaboraram com suas histórias pessoais para o curta e uma vaquinha online arrecadou R$ 5.000 para custear parte do orçamento. Yasmin Thayná assina roteiro e direção do filme, uma adaptação livre de seu conto Mc Kbela, publicado na coletânea Flupp Pensa 43 novos autores (Réptil/ Aeroplano, 2012).
Fotos © www.stephmunnier.com
Construída a partir de memórias afetivas, a história narra a relação da autora com seu cabelo, desde as dolorosas sessões de alisamento químico com sua avó, até o reconhecimento de sua ancestralidade nas raízes do cabelo natural, passando por situações limite de opressão e pelo reconhecimento de importantes círculos de acolhimento.
Em 2013, o mesmo conto foi transposto para o teatro em uma cena curta criada especialmente para o primeiro Home Theatre Festival Internacional de Cenas em Casa.
O projeto KBELA é um catalisador de memórias, histórias, forças, ancestralidades e lutas que se expressa através de imagens.
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Afrobetizar a educação no Brasil
Durante os dois dias gravações, uma equipe de mais de 50 pessoas de diferentes regiões do Brasil (e uma atriz de Portugal) esteve mobilizada, metade do time é formado por mulheres negras incluindo Maria Clara Araújo, 18, mulher trans negra de Recife, que acaba de entrar para o curso de pedagogia na UFPE.
Dados da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) apontam que nos últimos dez anos, mulheres negras representaram apenas 4,4% do elenco dos principais filmes de longametragem nacionais.
A pesquisa também revela que, no mesmo período, as mulheres ocuparam apenas 14% dos cargos de direção e 26% assinaram roteiros, nenhuma delas era negra.
Por tanto, no contexto brasileiro, KBELA é um projeto político feminista e antiracista no campo das artes pela construção e afirmação de espaços de autorrepresentação das mulheres negras. (FONTE: Yasmin Thayná)
O sucesso de público foi tão grande que o Odeon realizou mais 3 sessões no final de semana seguinte onde no domingo, ultima sessão, estiveram presente as crianças do projeto Afrobetizar (veja aqui matéria ja realizada sobre o projeto).
Fotos © www.stephmunnier.com
O Afrobetizar é um projeto que tem como principal foco a representatividade negra afim de que as crianças se projetem positivamente na sociedade e tem como educadores Vanessa Andrade, Aruanã Garcia e Gessica Justino. Cada vivência afirmativa é como se caíssem dos olhos delas vendas que estavam prometidas a ser eternas. E assim foi no Kbela.
Chegando na Cinelândia (praça que abriga o Cine Odeon), elas se depararam com uma das atrizes, a Dandara Raimundo e logo se impressionaram com sua beleza e obviamente seu cabelo foi a grande atração.
Começava ali um reconhecimento e uma possibilidade de ser belo sendo quem se é. Alguns passos a frente já estavam na porta do cinema e a pergunta foi se éramos irmãs das pessoas que estavam ali (Claro que somos!). Seus olhos brilhavam, especulavam e de verdade conseguimos em segundos concretizar nossa vontade de vê-las se sentindo representadas.
Logo já estavam “em casa”. Cumprimentavam as pessoas, estavam ansiosos para entrar na sala e correram logo para dar um abraço na diretora. Um deles me disse: “Caraca, é a diretora de verdade! Ela tem maior cabelão do estilo! ”
Isso importa!
Fotos © www.stephmunnier.com
Assistiram o filme atentos, olhos marejados. No final levantaram, dançaram e aplaudiram de pé… já no hall do Odeon um deles foi sorteado e ganhou o livro “Os mil cabelos de Ritinha” dos escritores Paloma Monteiro & Daniel Gnattali (https://www.facebook.com/osmilcabelosdeRitinha). Ali mesmo já começou a leitura.
Se divertiram, se emocionaram, descobriram-se , descobriram xs outrxs que também são elxs. Voltaram para casa rimando frases sobre o filme e sobre suas belezas. Voltaram relembrando as pessoas que viram. Lembravam das atrizes, entenderam as cenas, se espalharam porque estavam no que também lhes pertenciam.
Fotos © www.stephmunnier.com
Vivemos num pais onde os problemas sociais são raciais. Onde ainda cabelo crespo é tido como questão negativa. Onde a mídia se sustenta pelo desserviço que é a estereotipização e marginalização das mulheres negras, de negrxs e indígenas.
Onde deixar a auto estima dessa população baixa é uma estratégia que mata. Educar na contramão do sistema é caminhar como formiga que não desiste do seu objetivo por mais árduo que seja caminhar com pernas curtas.
E ter produções como o Kbela é adicionar milhares de elos e dar um salto enorme lá na frente. É manter a esperança de que é possível fazer acontecer, espalhar pontos positivos. É perceber que nossa representatividade é canal para educar o reconhecimento e fortalecimento social e político a partir do lugar que estão para o mundo numa constante crescente.
Fotos © www.stephmunnier.com
Agradecemos às crianças que se disponibilizaram a assistir o filme e à equipe do Kbela pela disponibilidade, carinho, atenção e amor doado aos pequenos. Acreditem. A semente está germinando.
Vanessa Andrade
Psicóloga, Doutoranda e Coodenadora do Projeto Afrobetizar
Aruanã Garcia
Biólogo, Mestre de biologia pela UFRJ, Educador de Capoeira Angola no Projeto Afrobetizar.
Gessica Justino
Bacharelanda em Dança pela UFRJ, Produtora do Coletivo Obá e Educadora de Danças Populares no Projeto Aforbetizar.