Cantora e compositora carioca que festejará 75 anos de vida ativista em setembro, a cidadã brasileira Leci Brandão da Silva encarna a mais perfeita tradução política do enredo da Mangueira na presente edição do show idealizado para arrecadar fundos para ajudar a escola verde-e-rosa a pôr o Carnaval na avenida neste ano de 2019.
Por Mauro Ferreira, do G1
Na noite de ontem, 19 de fevereiro, a dignidade de Leci ombreou a majestade de Chico Buarque de Mangueira, outra entidade verde-e-rosa, no palco da casa Vivo Rio. Tanto que o público se levantou e ovacionou de pé a artista após Leci cantar O bêbado e a equilibrista (João Bosco e Aldir Blanc, 1979). “Leci! Leci!”, gritou o público antes de reforçar o coro com um sonoro “Ele não”.
Atento aos sinais, o público entendeu que a aguçada consciência social do canto de Leci estava em total sintonia com o tom político do enredo História para ninar gente grande, criado pelo carnavalesco Leandro Vieira para o desfile da Mangueira neste ano de 2019.
A sintonia entre cantora e enredo era tamanha que, após medley em que versou com Pretinho da Serrinha nos partidos altos Papai vadiou(Rode do Jacarezinho e Gaspar do Jacarezinho, 1985) e As coisas que mamãe me ensinou (Leci Brandão e Zé Maurício, 1989), a cantora abriu mão de cantar samba mais popular para destilar o orgulho negro que pauta Identidade (Jorge Aragão, 1992).
Na sequência, Leci afiou o discurso político de Zé do Caroço (Leci Brandão, 1980), samba mais popular da lavra autoral da artista.
Enfim, mesmo com as chamativas presenças de Chico Buarque e Maria Bethânia, foi Leci Brandão o maior destaque do elenco de show beneficente criado sem grandes rigores estéticos. E o carinho de Chico com Leci, visível no coletivo número final, sublinhou a apoteose particular da artista.
Roteirista do espetáculo, que tem uma segunda apresentação agendada na mesma casa Vivo Rio para amanhã, 21 de fevereiro, Túlio Feliciano encadeou blocos individuais dos seis cantores solistas arregimentados para o evento – Alcione, Chico Buarque, Leci Brandão, Maria Bethânia, Mart’nália e Pretinho da Serrinha – com espaços para eventuais duetos e para a evolução de ritmistas e baluartes da Estação Primeira, como o sedutor primeiro casal de mestre-sala e porta-bandeira da Mangueira, formado atualmente por Matheus Olivério e Squel Jorgea.
Primeira grande atração na ordem do roteiro, Alcione estava com a voz tinindo. E foi com graves portentosos que homenageou o mais lendário puxador de samba da escola, Jamelão (1913 – 2008), ao cantar o samba-canção Nunca (Lupicínio Rodrigues, 1947), e que saudou o mangueirense Nelson Cavaquinho (1911 – 1986) ao proclamar Juízo final (Nelson Cavaquinho e Élcio Soares, 1973) antes de dar a sentença de Não deixe o samba morrer (Edson e Aloísio, 1975) com divisão e suingue tão espertos que, ao fim, Alcione mais pareceu uma blueswoman vinda do Morro de Mangueira ou de qualquer outra comunidade carioca.
Na sequência, Alcione chamou ao palco Mart’nália, que caiu de bossa no samba Menina (Paulinho Nogueira, 1970) – gravado por essa sapeca cantora para o disco editado em 2011 com a trilha sonora da série As cariocas (TV Globo) – e hasteou com descompromisso e leveza a bandeira de Desde que o samba é samba (Caetano Veloso, 1992) antes de mandar tudo para A tonga da mironga do kabuletê (Toquinho e Vinicius de Moraes, 1971).
Agregada afetivamente ao elenco mangueirense, mas identificada com a escola de samba Unidos de Vila Isabel, Mart’nália saiu do palco antes de chamar o imperial Pretinho da Serrinha. Mas voltou atrás, literalmente, e engatou com Pretinho saudação a Ivone Lara (1922 – 2018) – dona de uma das patentes mais altas do samba do Império Serrano – com a alegria de Sorriso negro (Jorge Portela, Adilson de Barro e Jair de Carvalho, 1981).
Crooner eficiente, Pretinho segurou sozinho a onda festiva do show ao lançar mão de sambas conhecidos como Tendência (Jorge Aragão e Ivone Lara, 1981), Alguém me avisou (Ivone Lara, 1980) e Retalhos de cetim (Benito Di Paula, 1973), sendo que especialmente nos dois últimos o percussionista tornado cantor conseguiu expressiva adesão da plateia já propensa a soltar a voz em hits de outros Carnavais.
Chamado ao palco por Leci Brandão, cantora que assumiu o comando do show após o set de Pretinho da Serrinha, Chico Buarque foi o samba verde-e-rosa em pessoa mesmo quando se afastou do morro de Mangueira – após entrar com adequada sobriedade na Sala de recepção (1976) de Cartola (1908 – 1980) – para passar no bairro carioca da Lapa para prestar a habitual Homenagem ao malandro (Chico Buarque, 1977).
Na sequência, Chico cantou Tua cantiga (Cristovão Bastos e Chico Buarque, 2017) e abriu alas para a entrada de Maria Bethânia no samba Quem te viu, quem te vê (Chico Buarque, 1966). Número sempre esperado nos shows da Mangueira, o dueto de Chico e Bethânia transcorreu em tons outonais sem o calor de verões passados.
Sozinha em cena, a cantora aumentou a temperatura vocal ao reviver Sonho impossível (The impossible dream) (Joe Darion e Mitch Leigh, 1965, em versão em português de Chico Buarque e Ruy Guerra, 1972) e ao cair no samba Volta por cima (Paulo Vanzolini, 1962), números em que Bethânia mandou oportunos e sutis recados políticos antes de fazer exaltações à Mangueira em pot-pourri de sambas com menções à escola.
No arremate, os cantores da Mangueira puxaram o samba da escola no Carnaval de 2019 e assumiram o comando da festa. Foi quando a entrada dos ritmistas e destaques da escola ofuscou as estrelas principais do show, fazendo que o brilho maior fosse do samba, o grande poder transformador nesse país de Jamelões, Lecis e Marielles. (Cotação: * * * 1/2)