Lei Maria da Penha: as alterações da Lei 14.550/23 com perspectiva de gênero

A Lei nº 14.550, que entrou em vigor em 20/4/2023, promoveu importantes alterações na Lei nº 11.340/06, com o nítido objetivo de reforçar o caráter protetivo à mulher vítima de violência doméstica e implementar uma igualdade substantiva, em consonância com o viés interpretativo pro personae quem tem orientado as recentes decisões do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema.

Inicialmente, no que tange ao âmbito de aplicabilidade da Lei Maria da Penha, iremos abordar o artigo 40-A, inserido pela Lei nº 14.550/23, e que dispõe que “esta Lei será aplicada a todas as situações previstas no seu art. 5º, independentemente da causa ou da motivação dos atos de violência e da condição do ofensor ou da ofendida“.

De acordo com a justificação apresentada ao Projeto de Lei nº 1.604/22, de autoria da então senadora Simone Tebet, e que deu origem à Lei nº 14.550/23, o objetivo da alteração legislativa seria “explicitar o espírito da Lei Maria da Penha: todas as formas de violência contra as mulheres no contexto das relações domésticas, familiares e íntimas de afeto são manifestações de violência baseada no gênero, que invocam e legitimam a proteção diferenciada para as mulheres” [1]. Isso porque alguns julgados do STJ vinham exigindo, para fins de aplicação da Lei Maria da Penha, a demonstração de motivação de gênero do agressor ou da vulnerabilidade da ofendida no caso concreto [2]. Com isso, fatores como a existência de conflitos patrimoniais, problemas com álcool ou drogas ou mesmo a vulnerabilidade decorrente da idade da vítima, eram frequentemente invocados para descaracterizar a violência de gênero e, portanto, afastar a incidência da Lei Maria da Penha.

Ocorre que, conforme vem sendo alertado por uma doutrina mais atenta à perspectiva de gênero, no contexto de uma sociedade patriarcal como a nossa, marcada por relações assimétricas de poder fundadas no gênero, toda e qualquer violência praticada contra a mulher no âmbito doméstico, familiar ou íntimo-afetivo deve ser reconhecida como um violência de gênero, independentemente de comprovação em concreto de motivação de gênero ou de relação de subordinação. A violência de gênero, no seio de uma ordem social hierarquizada, é estrutural, sendo característica de toda e qualquer violência contra a mulher no âmbito doméstico e familiar, ainda que presente também algum fator colateral, como um conflito patrimonial ou a vulnerabilidade decorrente da pouca idade da vítima.

Nessa esteira, cabe destacar a abalizada doutrina de Carmen de Campos e Isadora Machado:

“O gênero (que estrutura as relações hierárquicas) fundamenta a violência baseada no gênero, ou seja, a violência que é exercida sobre corpos femininos e feminizados em virtude das relações assimétricas de poder. Por isso, a violência prevista na lei Maria da Penha não pode ser desvinculada do gênero. Assim, toda e qualquer violência praticada contra mulheres nas relações domésticas, familiares e íntimo-afetivas é uma violência baseada no gênero porque reflete as relações assimétricas de poder que conferem ao masculino um suposto ‘mando’ ou supremacia e às mulheres uma suposta ‘obediência’ ou inferioridade. Essa é a razão pela qual não há que se questionar se há ‘motivação de gênero’ e/ou qualquer outra condição, pois essas são dadas pelas relações hierárquicas e assimétricas de poder construídas em uma sociedade patriarcal e não pela biologia” [3].

Importante lembrar que a Corte Interamericana de Direitos Humanos, em sentença condenatória proferida contra o Estado Brasileiro em 7/9/2021, no caso Márcia Barbosa de Souza, reconheceu que a violência contra as mulheres continua sendo um problema estrutural e generalizado no país, especialmente para as mulheres negras e pobres, haja vista a interseccionalidade dos marcadores de opressão de gênero, raça e classe [4].

Assim, percebe-se que o Projeto de Lei nº 1.604/22 foi idealizado em backlash às decisões do STJ, que exigiam a comprovação de motivação de gênero ou de relação de subordinação no caso concreto para a incidência da Lei Maria da Penha. Contudo, no interregno de sua tramitação, houve overruling na jurisprudência do STJ, conforme se extrai da decisão da Corte Especial, no AgRg na MPUMP n. 6/DF, relator ministro Nancy Andrighi, j. 18/5/2022: “O Superior Tribunal de Justiça entende ser presumida, pela Lei nº 11.340/2006, a hipossuficiência e a vulnerabilidade da mulher em contexto de violência doméstica e familiar. É desnecessária, portanto, a demonstração específica da subjugação feminina para que seja aplicado o sistema protetivo da Lei Maria da Penha, pois a organização social brasileira ainda é fundada em um sistema hierárquico de poder baseado no gênero, situação que o referido diploma legal busca coibir” [5]. Inclusive, em razão do overruling apontado, a edição nº 41 do Jurisprudência em Teses do STJ foi revisada e atualizada recentemente:

Enunciado 5: “a hipossuficiência e a vulnerabilidade da mulher em contexto de violência doméstica e familiar são presumidas, o que torna desnecessária a demonstração da subjugação feminina para aplicação da Lei Maria da Penha”.

Enunciado 6: “a vulnerabilidade, hipossuficiência ou fragilidade da mulher têm-se como presumidas nas circunstâncias descritas na Lei nº 11.340/2006”.

Enunciado 3: “O sujeito passivo da violência doméstica objeto da Lei Maria da Penha é a mulher, já o sujeito ativo pode ser tanto o homem quanto a mulher, desde que fique caracterizado o vínculo de relação doméstica, familiar ou de afetividade, além da convivência, com ou sem coabitação”.

Outrossim, especificamente em relação ao crime de estupro de vulnerável, a 3ª Seção do STJ, no EAREsp 2.099.532 / RJ, relator ministro Sebastião Reis Junior, j. 26/10/2022, pacificando divergência existente entre as Turmas de Direito Penal, decidiu que a vulnerabilidade decorrente da idade da vítima mulher, quando criança ou adolescente, não é apta a afastar a aplicabilidade da Lei Maria da Penha, nas hipóteses em que a violência sexual ocorreu no âmbito doméstico, familiar ou de relação íntima de afeto. De fato, o estupro de vulnerável perpetrado contra vítima menina, no contexto de violência doméstica, configura violência de gênero, proporcionada não apenas pela vulnerabilidade etária da ofendida, mas também (e principalmente) pela ordem social hierarquizada e assimétrica fundada no gênero, que estrutura a nossa sociedade machista.

Desta feita, concluímos que a Lei nº 14.550/23, ao inserir o artigo 40-A na Lei nº 11.340/06, não importou em uma ampliação substancial das hipóteses de incidência da Lei Maria da Penha, mas promoveu verdadeira interpretação autêntica, na esteira do overruling verificado recentemente na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Se reconhecemos que a violência de gênero é estrutural, logo, a aplicação da Lei Maria da Penha a todas as situações previstas no seu artigo 5º (âmbito doméstico, familiar ou íntimo-afetivo), independentemente da causa ou da motivação dos atos de violência e da condição do ofensor ou da ofendida, é a interpretação mais consentânea com seus fins sociais e com as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar, na esteira da diretriz hermenêutica já contida no artigo 4º da Lei nº 11.340/06.

Por outro giro, a Lei nº 14.550/23 também inseriu no artigo 19 da Lei nº 11.340/06, que trata das medidas protetivas de urgência concedidas pelo juiz, os seguintes parágrafos, que analisaremos a seguir:

“§ 4º. As medidas protetivas de urgência serão concedidas em juízo de cognição sumária a partir do depoimento da ofendida perante a autoridade policial ou da apresentação de suas alegações escritas e poderão ser indeferidas no caso de avaliação pela autoridade de inexistência de risco à integridade física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral da ofendida ou de seus dependentes.

§ 5º. As medidas protetivas de urgência serão concedidas independentemente da tipificação penal da violência, do ajuizamento de ação penal ou cível, da existência de inquérito policial ou do registro de boletim de ocorrência.

§ 6º. As medidas protetivas de urgência vigorarão enquanto persistir risco à integridade física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral da ofendida ou de seus dependentes.”

A alteração legislativa mostra-se harmônica com o entendimento de que as medidas protetivas de urgência possuem a natureza jurídica de tutela inibitória, porquanto satisfativas e autônomas, visando proteger a mulher em situação de risco de violência doméstica, sem qualquer instrumentalidade a um processo principal e sem que estejam atreladas a um tipo penal. Nas palavras de Berenice Dias, “o fim das medidas protetivas é proteger direitos fundamentais, evitando a continuidade da violência e situações que a favorecem. Não são, necessariamente, preparatórias de qualquer ação judicial. Não visam processos, mas pessoas” [6].

A rigor, como a Lei Maria da Penha possui cunho eminentemente protetivo, e não meramente punitivista, as modalidades de violência doméstica contra a mulher estão elencadas em rol não taxativo do artigo 7º da Lei nº 11.340/06, sem que seja necessário um correspondente tipo penal. Por isso, é indevido o condicionamento da concessão de medida protetiva de urgência a prévio registro de ocorrência, podendo o requerimento ser formulado de forma autônoma com base em declaração escrita da mulher vítima de violência doméstica, seja física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral, e até mesmo independentemente de representação processual por advogado ou defensor público.

No que tange aos requisitos legais, por se tratar de decisão em sede de juízo de cognição sumária, inerente às tutelas de urgência (artigo 300 do CPC), devem estar presentes o fumus boni iuris e o periculum in mora.

fumus boni iuris diz respeito ao standard probatório para a concessão das medidas protetivas de urgência, que, por um juízo de ponderação de interesses efetuado pelo legislador, corresponde à palavra da ofendida. Com isso, eventual indeferimento de medida protetiva sob a alegação de que o requerimento está baseado apenas na palavra da vítima constituirá fundamentação inidônea. Trata-se de importante alteração legislativa, que, na esteira do protocolo de julgamento com perspectiva de gênero adotado pela Resolução CNJ nº 492/2023, visa evitar a reprodução de estereótipos de desqualificação da palavra da mulher, próprios de uma sociedade estruturalmente machista. A respeito dos standards probatórios das medidas protetivas, leciona Janaína Matida:

“De um lado, há o risco de se implementar restrições aos direitos de uma pessoa em realidade inocente; de outro lado, há o risco de, deixando de restringir os direitos de um agressor, assim se contribua para a continuidade da escalada da violência contra a mulher. Em resumidas linhas, em muitos casos o que está sobre a mesa é a integridade física, psicológica e até mesmo a vida de uma mulher. Portanto, não há de se perder de vista que esses são os erros a respeito dos quais é preciso decidir — sobre qual se deve arriscar mais, sobre qual se deve arriscar menos” [7].

Por outro lado, no que concerne ao periculum libertatis, o legislador condicionou o indeferimento das medidas protetivas à avaliação de inexistência de risco à integridade física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral da ofendida ou de seus dependentes. Ou seja, não é ônus da ofendida a demonstração da probabilidade de dano, mas sim do julgador a demonstração da inexistência de situação de risco. Em caso de dúvida, portanto, ela deverá ser revertida em prol da proteção da mulher para fins de rompimento do ciclo de violência.

Por fim, considerando que as medidas protetivas de urgência não são instrumentais a processos, elas deverão vigorar enquanto persistir risco à integridade física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral da ofendida ou de seus dependentes. Por isso, a decisão de revogação exige a prévia oitiva da vítima para avaliação quanto à cessação efetiva da situação de risco, inclusive nas hipóteses de extinção de punibilidade, arquivamento de inquérito policial ou mesmo prolação de sentença absolutória.

Tal entendimento foi recentemente acolhido pela 3ª Seção do STJ, no REsp 1.775.341-SP, em decisão publicada no Informativo de Jurisprudência nº 770/2023, em caso paradigmático de atuação da Defensoria Pública de São Paulo. Conforme assentado, antes do encerramento da cautelar protetiva, a defesa deve ser ouvida, notadamente para que a situação fática seja devidamente apresentada ao juízo competente, que, diante da relevância da palavra da vítima, verificará a necessidade de prorrogação/concessão das medidas, independentemente da extinção de punibilidade do autor.

Afinal, o ônus de eventual falha estatal em promover uma investigação diligente e com perspectiva de gênero (artigo 7.b da Convenção de Belém do Pará) não deve recair sobre a vítima, assim como eventual desinteresse da ofendida na persecução penal não afasta o seu direito de viver sem violência.


[1] Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9171745&ts=1681993941708&disposition=inline&_gl=1*1oo4c31*_ga*MTIxMDY4MTU2MC4xNjgyMDI4MjAw*_ga_CW3ZH25XMK*MTY4MjI3MDM4Ny4yLjAuMTY4MjI3MDM4Ny4wLjAuMA, acesso em 23/4/2023, p. 9.

[2] Nesse sentido, a título exemplificativo: 6ª Turma do STJ, AgRg no REsp nº 1.430.724/RJ, rel. min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 17/3/2015, DJe 24/3/2015; e 5ª Turma do STJ, AgRg no REsp 1900484/GO, rel. min. Felix Fischer, j. 2/2/2021, DJe 17/2/2021.

[3] CAMPOS, Carmen Hein de; MACHADO, Isadora Vier. “Lei Maria da Penha – Lei n. 11.340 de 7 de Agosto de 2006”. In Manual de Direito Penal com Perspectiva de Gênero, org. Carmen Hein de Campos, Ela Wiecko V. de Castilho, 2ª tiragem, 195-216. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2022, p. 198.

[4] Disponível em https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_435_por.pdf, acesso em 23/4/2023, p. 16-20.

[5] O entendimento assentado pela Corte Especial tem se refletido nas recentes decisões de Turma do STJ acerca do âmbito de aplicabilidade da Lei Maria da Penha: 6ª Turma do STJ, AgRg no REsp 1.906.303/SP, rel. min. SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, j. 13/3/2023; 6ª Turma do STJ, REsp 1.913.762/GO, rel. min. ANTONIO SALDANHA PALHEIRO, DJe 17/2/2023)

[6] DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça. 6ª ed. rev. e atual. Salvador: JusPodivm, 2019, p. 163.

[7] MATIDA, Janaína. Algumas reflexões probatórias para os crimes de gênero. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-jul-23/limite-penal-algumas-reflexoes-probatorias-crimes-genero, acesso em 23/4/2023.

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