Sempre que dava entrevistas, Bira Presidente gostava de elencar figuras importantes que haviam passado pela quadra do Cacique de Ramos: da jornalista Glória Maria, que foi musa do bloco, ao cantor Emílio Santiago, passando pelo extenso time de sambistas que saltaram do terreno da Rua Uranos 1.326 para o sucesso (Zeca Pagodinho, Jorge Aragão, Almir Guineto, Arlindo Cruz etc.).
Tudo o que aconteceu ali foi impulsionado por ele. Bira transformou o Cacique numa das agremiações mais importantes da história do carnaval carioca e foi anfitrião da revolução que significou o aparecimento do chamado pagode, entre os anos 1970 e 1980. Criou o Fundo de Quintal, grupo que continua, 45 anos depois, sendo referência fundamental para quem faz e ama samba. Bira é personagem incontornável da cultura popular brasileira.
Morre Bira Presidente, fundador do Cacique de Ramos e do Fundo de Quintal
Ubirajara Félix do Nascimento nasceu em 23 de março de 1937, filho de Domingos e Conceição, que tinham amigos como Pixinguinha, João da Baiana e Gastão Vianna. O menino e seus irmãos Ubirany e Ubiracy cresceram ouvindo muita música.
A mãe, católica fervorosa, costumava passar mal nas igrejas, como o primogênito contava. Numa viagem à Bahia, esteve com Mãe Menininha do Gantois, que a alertou: ela tinha obrigação com os orixás. Virou Mãe Conceição, e sua espiritualidade marcaria a história do Cacique de Ramos. Ela fez um trabalho numa das tamarineiras do terreno com o objetivo de que o ambiente ficasse protegido.
“Minha mãe botou o patuá na tamarineira e me disse: ‘Meu filho, as pessoas que pisarem aqui te querendo bem, e tiverem talento, vão vencer’. Já chegou muita gente para quebrar esse encanto, mas a mandinga é forte”, contava Bira.
Em 1961, três anos depois de Bira e amigos criarem o Homem da Caverna, o bloco virou Cacique de Ramos. O novo batismo tem relação com os nomes indígenas dos três filhos de Mãe Conceição. A inauguração foi em 20 de janeiro, dia de São Sebastião e Oxóssi.
Bira ganhou o “sobrenome” Presidente por assumir essa função e fez com que o bloco crescesse muito nas décadas de 1960 e 1970, tendo como grande rival o Bafo da Onça, do Catumbi. O Cacique chegou a desfilar no Centro do Rio com dez mil foliões. As fantasias eram sempre de indígenas, muitas vezes criadas por artistas plásticos, como Carlos Vergara, o mais atuante de todos.
Na década de 1980, quando as subvenções municipais estavam baixíssimas e não sustentavam os grandes blocos, o Cacique contou com o sucesso do Fundo de Quintal para ter recursos suficientes para botar o cortejo na rua.

Uma contribuição decisiva de Bira para a história do samba começou de modo totalmente informal. Às quartas-feiras, acontecia um futebol na quadra do Cacique, seguido de churrasco, cerveja e música. A festa começou a chamar atenção e a ser frequentada por amigos dos peladeiros e por pessoas que desfilavam no Cacique. Era o caso do jogador Alcir Portela, do Vasco. Ele chamou a amiga botafoguense Beth Carvalho para dar uma espiada naquele samba diferente, e ela ficou maravilhada. Nunca vira nada parecido.
À frente de um celeiro de bambas
Ubirany tocava um instrumento inventado por ele mesmo, o repique de mão; Sereno, amigo dos irmãos, punha a tambora dos grupos de bolero sobre as pernas e tocava o renomeado tantã, que ocupava a função do surdo; e Almir Guineto tocava o banjo com braço de cavaquinho, que aprendera no Salgueiro com o pai, Iraci Serra.
Beth levou aquela sonoridade para o estúdio em 1978 e realizou um de seus discos mais importantes, “De pé no chão”. Aos instrumentos desconhecidos se juntava o pandeiro grande de Bira, de 12 polegadas, tocado de forma original. Bira tornou-se um pandeirista de estilo tão marcante que era frequentemente chamado para participar de discos de outros artistas.
O Fundo de Quintal começou com ele, Ubirany, Sereno, Guineto, Jorge Aragão, Sombrinha e Neoci. Substituições ocorreram ao longo dos anos, e pelo conjunto também passaram, por exemplo, Arlindo Cruz, Cleber Augusto e Mário Sérgio. O trio percussivo só se desfez nos últimos anos: Ubirany morreu de Covid em 2020, e Bira teve de se afastar do grupo por causa do Alzheimer. Sereno permanece com o seu tantã.
Com suas roupas vistosas, todas muito bem feitas, Bira atraía facilmente os olhares. Quando sambava o seu miudinho no palco, as plateias se deliciavam. Ao falar, podia causar estranheza ao tentar ser um tanto empolado, mas era comunicativo. Ninguém ficava imune ao seu carisma.
Ninho de bambas

Nunca deixou de ser reverenciado por aqueles que despontaram nas rodas de samba do Cacique. Zeca Pagodinho costumava chamá-lo para discursar no primeiro dia das gravações de um disco seu, como uma espécie de bênção. Gostava que o chamassem de Presidente, o que nunca deixou de ser no Cacique e passou a ser no samba carioca de forma geral, adorado também por gente mais nova.
Bira morreu na noite do último sábado (14), aos 88 anos, no Hospital da Unimed Ferj, na Barra da Tijuca. Estava internado havia uma semana por causa de complicações decorrentes do câncer de próstata e do Alzheimer. Nas redes sociais, foi homenageado por Zeca, Leci Brandão, Marcelo D2, pelo prefeito Eduardo Paes e por muitas outras pessoas. Deixa as filhas Karla Marcelly e Christian Kelly, os netos Yan e Brian e a bisneta Lua. O velório será realizado nesta segunda-feira (16), na Capela 9 do Cemitério Jardim da Saudade, em Sulacap, das 14h às 16h30.