- Poucos falam tão diretamente à juventude como Mano Brown
- Racionais podem dar impulso chave para atrair jovens à leitura
“O ‘Mano a Mano’ é tão importante para mim quanto os Racionais”, disse Mano Brown durante o evento que marcou o lançamento da adaptação de seu podcast em livro, nesta quinta (13).
Não é pouco quando se fala daquele que é seguro definir como o maior e mais influente grupo de rap do país.
Com a literatura agora correndo atrás de sua obra —lembre a edição em livro das letras de “Sobrevivendo no Inferno”, em 2018—, tem se entendido com mais clareza que Brown e seus parceiros não produziram apenas uma revolução musical, mas cultural.
O projeto “Mano a Mano” surgiu “da vontade de ser útil”, como afirmou o compositor ao auditório lotado do Sesc 14 Bis, em São Paulo. Logo se tornou um dos podcasts mais populares do país, figurinha carimbada nas listas de mais ouvidos do Spotify, plataforma onde é produzido.
Agora, 20 dessas conversas estão disponíveis em trechos selecionados no volume impresso, acrescidas de um prefácio inédito em que Brown afirma que representa “a rua entrevistando”.
No programa, Brown move suas perguntas pela curiosidade honesta, pela fome intelectual, com menos gana de aparecer que boa parcela dos repórteres em atividade. Parte do fascínio exercido pelo podcast é ver um homem que fez sua carreira da fala incessante do rap se deter antes de tudo na escuta.
Sua condução, feita ao lado da talentosa jornalista Semayat Oliveira, com frequência traz aspectos inusitados de seus entrevistados, algo favorecido também pela longa duração das conversas. Repare, por exemplo, no modo como fazem o médico Drauzio Varella disparar memórias de sua infância.
Assim surgem entrevistas de impacto com alguns dos principais intelectuais do Brasil, caso de Sueli Carneiro e Nei Lopes, músicos como Gilberto Gil, Emicida e Djavan, personalidades do esporte como Ronaldo e Walter Casagrande e lideranças políticas como Marina Silva, da Rede, e Lula, do PT —o episódio de podcast mais ouvido do Spotify naquele ano de 2021, quando o hoje presidente ainda não ocupava o cargo.
As conversas não se furtam a tirar o entrevistado da zona de conforto. Nem os entrevistadores. “Não somos a voz da razão”, disse Brown no palco do evento, afirmação ousada na cacofonia do “eu primeiro” de um mundo com tanta gente imbuída de síndrome de protagonista nas redes.
Dois dos episódios de maior repercussão foram com convidados de direita, os influenciadores Fernando Holiday e Paulo Cruz, tratados com a mesma seriedade daqueles que se alinham à postura de esquerda dos anfitriões. Caso raro num país em que falar de polarização virou carne de vaca, mas em que tão pouca gente faz algo para restaurar a arena do debate público.
Muito se fala em como fomentar a leitura num país desigual em que ela goza de popularidade cada vez mais escassa. Antes de arquitetar projetos mirabolantes ou esperar sentado por programas de governo, uma saída mais imediata está em levar os jovens aos livros por meio do que já consomem.

Não é demais repetir a imensa introjeção dos Racionais nas camadas sociais a que o Brasil sempre deu as costas. Poucos falaram com tanta força da procura pela paz na guerra do dia a dia. Poucos incorporaram tão vivamente a consciência negra. Poucos souberam traduzir como é sobreviver no inferno.
É claro que isso já foi bem realizado na literatura —Conceição Evaristo, José Falero e Ferréz estão aí de prova.
Mas a própria Semayat disse, ao responder uma pergunta do mediador Fernando Baldraia, editor de “Mano a Mano” na Companhia das Letras, que ao crescer num mundo em que os colunistas de jornal traziam todos “uma visão embranquecida”, quem fazia comentários sobre sua vida eram os rappers.
Mano Brown já é influência literária da juventude faz tempo. Ele só não estava antes em livro.
Livros, contudo, são meios fundamentais de sedimentar ideias, por seu caráter de registro histórico. Talvez a edição de “Sobrevivendo no Inferno” não tenha feito o disco de alcance avassalador ficar mais conhecido, mas facilita que seja analisado com a profundidade detida da crítica literária, adequada a uma obra cobrada até em vestibulares.
No evento desta quinta, duas perguntas da plateia foram feitas por pesquisadores jovens que usaram os Racionais em suas pesquisas universitárias e em sala de aula —um deles criou um módulo freiriano de ensino de matemática a partir de letras do grupo.
Pense quanta gente você já ouviu dizer, de coração meio apertado, que “ler não é para mim”. Esse hábito desperta sempre de um primeiro passo, seja incentivado pela escola, pela família ou por um livro que você pode não entender, a princípio, como literatura.
Ampliar o acesso à leitura é, também, fazer o possível para despoluir o ar intimidatório que às vezes calha de se pregar como piche nos livros. Oferecer ao potencial leitor algo em que ele identifique seu estilo, tem vontade de pegar na mão, abrir a primeira página, olhar o que tem na segunda.
Aos editores, exige imaginar qual livro ainda não existe e pode seduzir um novo leitor ou leitora —ou qual livro já existe, mas ainda não tem essa forma. Talvez seja um podcast.
Quem já ouve atentamente as ideias de Mano Brown agora pode ser levado por ele até um livro. É um passo pontual, que pode ser decisivo. E sabemos que essas pessoas são uma enorme massa. Salve, massa.
Mano a Mano
- Preço R$ 79,90 (360 págs.); R$ 39,90 (ebook)
- Autoria Mano Brown
- Editora Companhia das Letras